A redação do ENEM e a Base Nacional Curricular

Hoje, 18 de janeiro, sai o resultado das inscrições no Sistema de Seleção Unificada (Sisu). Até quinta feira passada, dia 14/1 – último dia de inscrição no Sistema, tinham feito suas inscrições 2.712.937 candidatos às 228.071 vagas (10,9% a mais que no ano passado, que contou com 205.514 vagas) em 131 instituições públicas de educação superior. O total de inscrições chegou a 5.275.613, uma vez que cada candidato pode fazer duas opções de curso. As matrículas deverão ser efetuadas nos dias 22, 25 e 26 próximos.

O Sisu usa as notas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para selecionar candidatos a vagas em instituições públicas de educação superior em todo país. Podem fazer inscrição no Sisu os estudantes que tenham participado do exame em 2015 e tirado nota na redação acima de zero, mas cada instituição participante pode atribuir pesos diferentes ou bônus nas provas do Enem de 2015 para seus cursos. Assim, a nota do candidato pode variar de acordo com os parâmetros definidos pela instituição. Além disso, algumas universidades utilizam o Sisu apenas como uma parte do processo de seleção, aplicando provas adicionais, há ainda outras que usam mecanismos de admissão complementares, como entrevistas, por exemplo. Em praticamente todos eles a redação é a nota com maior peso. Isso acontece porque a capacidade de fazer uma redação de boa qualidade é um dos melhores e mais baratos preditores de sucesso acadêmico no ensino superior, o que é o objetivo de todos os processo de seleção: identificar os alunos com maior probabilidade de terminar o curso com boas notas.

Desta forma, a redação do ENEM se transformou em pouco anos em um dos itens de currículo mais conhecidos do Brasil. Entretanto, para se ter uma noção de o quanto o setor da educação é frágil quando se trata de especificar critérios, este que é o item de prova mais importante que todos os demais do ponto de vista da seleção, e o que tem o maior de poder de equalizar oportunidades do ponto de vista dos alunos ainda padece do mal da falta de transparência e resistência à especificação de padrões de qualidade.

Em 2013 o INEP publicou um guia de redação com o detalhamento dos critérios, mas os critérios, principalmente os que envolvem Gramática são muito toscos. Relembrando, são 5 competências avaliadas na redação.

Competência 1: Demonstrar domínio da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa.

Competência 2: Compreender a proposta de redação e aplicar conceitos das várias áreas de conhecimento para desenvolver o tema, dentro dos limites estruturais do texto dissertativo-argumentativo em prosa.

Competência 3: Selecionar, relacionar, organizar e interpretar informações, fatos, opiniões e argumentos em defesa de um ponto de vista.

Competência 4: Demonstrar conhecimento dos mecanismos linguísticos necessários para a construção da argumentação.

Competência 5: Elaborar proposta de intervenção para o problema abordado, respeitando os direitos humanos.

Há um detalhamento para se explicar porque uma pessoa pode tirar zero:

“A redação receberá nota 0 (zero) se apresentar uma das características a seguir: ƒ fuga total ao tema; ƒ não obediência à estrutura dissertativo-argumentativa; ƒ texto com até 7 (sete) linhas; ƒ impropérios, desenhos e outras formas propositais de anulação ou parte do texto deliberadamente desconectada do tema proposto; ƒ desrespeito aos direitos humanos; e ƒ folha de redação em branco, mesmo que haja texto escrito na folha de rascunho.”

Mas a parte da Gramática é só para insiders:

“Além dos requisitos de ordem textual, como coesão, coerência, sequenciação, informatividade, há outras exigências para o desenvolvimento do texto dissertativo-argumentativo:

  • ausência de marcas de oralidade e de registro informal;

  • precisão vocabular; e

  • obediência às regras de: ƒ concordância nominal e verbal; ƒ regência nominal e verbal; ƒ pontuação; ƒ flexão de nomes e verbos; ƒ colocação de pronomes oblíquos (átonos e tônicos); ƒ grafia das palavras (inclusive acentuação gráfica e emprego de letras maiúsculas e minúsculas); e ƒ divisão silábica na mudança de linha (translineação).”

A diferença entre tirar 200 pontos neste quesito e 160 depende da boa vontade do corretor:

200 pontos – Demonstra excelente domínio da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa e de escolha de registro. Desvios gramaticais ou de convenções da escrita serão aceitos somente como excepcionalidade e quando não caracterizem reincidência.

160 pontos – Demonstra bom domínio da modalidade escrita formal da Língua Portuguesa e de escolha de registro, com poucos desvios gramaticais e de convenções da escrita.

Só que 40 pontos de diferença em uma redação do ENEM é muitas vezes a diferença entre entrar ou não no curso que se deseja. Adivinhem quem tem maior chance de ter um professor que ensine todos os detalhes de Gramática para se fazer uma boa redação no ENEM e na vida acadêmica e profissional futura?

Mesmo que os novos corretores das redações do ENEM estejam sendo melhor preparados pelo MEC/Inep, inclusive fazendo provas eles mesmos, a partir de 2015, os critérios de correção precisam ser mais transparentes. A falta de clareza é uma sombra que leva à assimetria de informações – uns sabem o que devem aprender, outros, não. A maioria, por sinal. Isso não é só prejudicial para quem quer entrar para a universidade, é prejudicial para o País.

Enquanto isso, no currículo de Portugal, as metas de aprendizagem Língua Portuguesa são bem claras e incluem Gramática de maneira explícita, algo bem simples de se fazer em se tratando da autoridade máxima educacional de um país, mas que o nosso Ministério da Educação não conseguiu incluir na primeira versão da nova Base Nacional Comum.

Para facilitar a vida de quem precisa escrever um currículo e está à cata de referências, segue a transcrição das metas de Gramática do currículo Português a partir do 6º ano do equivalente ao ensino fundamental brasileiro.

6º ANO

21. Explicitar aspetos fundamentais da morfologia e da lexicologia.
1. Distinguir regras de formação de palavras por composição (de palavras e de radicais).
2. Distinguir derivação de composição.
3. Identificar e usar os seguintes modos e tempos verbais:
a) formas finitas – condicional e conjuntivo (presente, pretérito imperfeito e
futuro);
b) formas não finitas – infinitivo (impessoal e pessoal) e gerúndio.

22. Conhecer classes de palavras.
1. Integrar as palavras nas classes a que pertencem:
a) verbo: principal (intransitivo e transitivo), copulativo e auxiliar (dos tempos
compostos e da passiva);
b) determinante interrogativo;
c) pronome indefinido;
d) interjeição.

23. Analisar e estruturar unidades sintáticas.
1. Aplicar regras de utilização do pronome pessoal em adjacência verbal, colocando‐o
corretamente nas seguintes situações: em frases que contêm uma palavra negativa;
em frases iniciadas por pronomes e advérbios interrogativos.
2. Identificar as seguintes funções sintáticas: predicativo do sujeito, complemento
oblíquo, complemento agente da passiva e modificador.
3. Substituir o complemento direto e o indireto pelos pronomes correspondentes.
4. Transformar frases ativas em frases passivas e vice‐versa.
5. Transformar discurso direto em discurso indireto e vice‐versa, quer no modo oral
quer no modo escrito.
6. Distinguir frase complexa de frase simples.

7º ANO

21.Explicitar aspetos fundamentais da morfologia.
1. Identificar e conjugar verbos em todos os tempos (simples e compostos) e modos.
2. Sistematizar paradigmas flexionais dos verbos regulares da 1.ª, da 2.ª e da 3.ª
conjugação.
3. Identificar as formas dos verbos irregulares e dos verbos defetivos (impessoais e
unipessoais).
4. Sistematizar padrões de formação de palavras complexas: derivação (afixal e nãoafixal)
e composição (por palavras e por radicais).

5. Formar o plural de palavras compostas.
6. Explicitar o significado de palavras complexas a partir do valor do radical e de
prefixos e sufixos nominais, adjetivais e verbais do português.

22. Reconhecer e conhecer classes de palavras.
1. Reconhecer as classes de palavras estudadas nos ciclos anteriores (retoma).1
2. Integrar as palavras nas classes a que pertencem:
a) verbo principal: transitivo direto, trasitivo indireto, transitivo direto e
indireto;
b) advérbio: valores semânticos – de dúvida, de inclusão, de exclusão, de
designação; funções – relativo e conectivo;
c) determinante: indefinido, relativo, interrogativo;
d) pronome relativo;
e) conjunção coordenativa: copulativa, adversativa, disjuntiva, conclusiva e
explicativa;
f) conjunção subordinativa: causal e temporal;
g) locução: prepositiva e adverbial.

23. Analisar e estruturar unidades sintáticas.
1. Aplicar regras de utilização do pronome pessoal em adjacência verbal: em frases
afirmativas; em frases que contêm uma palavra negativa; em frases iniciadas por
pronomes e advérbios interrogativos; com verbos antecedidos de certos advérbios
(bem, mal, ainda, já, sempre, só, talvez…).
2. Consolidar o conhecimento sobre as funções sintáticas estudadas no ciclo anterior.2
3. Identificar o sujeito subentendido e o sujeito indeterminado.
4. Transformar frases ativas em frases passivas e vice‐versa (consolidação).
5. Transformar discurso direto em indireto e vice‐versa (todas as situações).
6. Identificar processos de coordenação entre orações: orações coordenadas
copulativas (sindéticas e assindéticas), adversativas, disjuntivas, conclusivas e
explicativas.
7. Identificar processos de subordinação entre orações:
a) subordinadas adverbiais causais e temporais;
b) subordinadas adjetivas relativas.
8. Identificar oração subordinante.

1 Nome (próprio, comum e comum coletivo); adjetivo (qualificativo e numeral); verbo principal (intransitivo, transitivo),
copulativo e auxiliar (dos tempos compostos e da passiva); advérbio (valores semânticos – de negação, de afirmação, de
quantidade e grau, de modo, de tempo, de lugar; funções – interrogativo); determinante (artigo definido e indefinido,
demonstrativo, possessivo); pronome (pessoal, demonstrativo, possessivo, indefinido); quantificador numeral; preposição;
interjeição.
2 Sujeito (simples e composto), vocativo, predicado, complemento direto, complemento indireto, complemento oblíquo,
complemento agente da passiva, predicativo do sujeito, modificador.

8º ANO

23. Conhecer classes de palavras.
1. Integrar as palavras nas classes a que pertencem:
a) advérbio: de dúvida, de designação e relativo
b) conjunção subordinativa: condicional, final, comparativa, consecutiva,
concessiva e completiva;
c) locução conjuncional.
24. Explicitar aspetos fundamentais da sintaxe do português.
1. Aplicar as regras de utilização do pronome pessoal em adjacência verbal: em orações
subordinadas; na conjugação do futuro e do condicional.
2. Identificar as funções sintáticas de modificador do nome (restritivo e apositivo).
3. Identificar processos de subordinação entre orações:
a) subordinadas adverbiais condicionais, finais, comparativas, consecutivas e
concessivas;
b) subordinadas substantivas completivas (função de complemento direto).
4. Estabelecer relações de subordinação entre orações, identificando os elementos de
que dependem as orações subordinadas.
5. Dividir e classificar orações.
25. Reconhecer propriedades das palavras e formas de organização do léxico.
1. Identificar neologismos.
2. Identificar palavras polissémicas e seus significados.
3. Distinguir palavras polissémicas de monossémicas.
4. Determinar os significados que dada palavra pode ter em função do seu contexto de
ocorrência: campo semântico.
5. Reconhecer e estabelecer as seguintes relações semânticas: sinonímia, antonímia,
hiperonímia e holonímia.

9º ANO

24.Explicitar aspetos da fonologia do português.
1. Identificar processos fonológicos de inserção (prótese, epêntese e paragoge),
supressão (aférese, síncope e apócope) e alteração de segmentos (redução vocálica,
assimilação, dissimilação, metátese).
25. Explicitar aspetos fundamentais da sintaxe do português.
1. Sistematizar as regras de utilização do pronome pessoal em adjacência verbal em
todas as situações.
2. Consolidar o conhecimento de todas as funções sintáticas.
3. Identificar orações substantivas relativas.
4. Dividir e classificar orações.
26. Reconhecer propriedades das palavras e formas de organização do léxico.
1. Identificar neologismos e arcaísmos.

 

 

 

5 Respostas

  1. Parabéns pelo excelente trabalho!

  2. Ilona,
    boa tarde.

    Em que pese toda a grade curricular, preparação, teorias e aplicações, não podemos deixar de mencionar aspecto extremamente importante, quando não determinante na avaliação de uma redação. Explico e detalho. No colégio em que estudei (Lycée Pasteur – Cours Expérimental Bilingue), tinhamos “redação” desde cedo, e a partir do que seria hoje o nono ano do ensino fundamental, passamos a ter “dissertação”.
    Em uma ocasião, o tema da dissertação era: “A coragem”.
    Pois bem: a mesma classe, o mesmo professor.
    Um aluno fez uma dissertação gigantesca, com apresentação, tese, antítese, conclusão, recheada de exemplos e citações (tinhamos igualmente aula de filosofia).
    Uma aluna, passou as quatro horas sem escrever uma palavra. Minutos antes de entregar a dissertação, ela escreveu UMA FRASE: ” A coragem é isso / Le courage, c’est çà”.

    Ambos tiveram nota máxima….

    1. Morris, há inúmeros instrumentos de política e de prática educacional que decorrem do currículo. Um deles é um sistema detalhado de avaliação, que explicita os critérios usados para aferir se os alunos atingiram os objetivos propostos. Nesse seu exemplo, se o critério principal fosse criatividade e ousadia, ok a nota máxima. Se o critério fosse a estrutura e a complexidade da argumentação, a segunda não receberia. Temos que aprender a viver a educação de forma institucional, com critérios claros e acessíveis a todos. A forma dissimulada de avaliar a dar aulas beneficia apenas aqueles que adquirem o currículo oculto em casa.

  3. Há muito abandonamos o ensino de Gramática Normativa em nossas escolas. Falar em Sintaxe coloca qualquer um na condição de tresloucado. Pedagogos e “educatecas” de plantão transformaram o Ensino de Língua Portuguesa, em todos os níveis da Educação Básica, em uma atividade lúdica, resumida a simples leitura de textos com ilações inócuas.
    Bons tempos em que, já no antigo Ginásio (faixa etária de 11 a 14 anos), líamos,entre outros, por indicação e posterior cobrança, Eça e Machado, além do ensino de Morfologia e Sintaxe apuradas.

    1. Luiz, este novo currículo deve mitigar este problema. Hora de voltar a vara ao ponto médio…

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