Arquivos Mensais: novembro \30\America/Sao_Paulo 2015

Melhorando as políticas públicas com boas perguntas que levantem o nível do debate

O editorial da Folha de São Paulo de ontem, domingo, 29 de novembro de 2015, expõe a opinião do jornal sobre o processo de elaboração da Base Nacional Comum de maneira detalhada, como ainda não tínhamos visto em um espaço similar (de opinião editorial) no debate sobre o tema na imprensa.

O programa Globo News Especial do mesmo dia também tratou do tema de com maior profundidade do que vinha sendo feito até a semana passada, quando chamamos atenção aqui neste blog para uma substancial mudança no rumo do debate: menos amenidades e mais conteúdo para que o que se expõe institucionalmente sobre o tema possa realmente contribuir para o desenho de uma política pública que tem potencial tanto para melhorar a qualidade da educação no Brasil, quanto para piorá-la.

É infinitamente chato falar de coisas específicas e técnicas. Ainda mais na imprensa e pior ainda se o tema for educação, porque exige processos cognitivos exaustivos e atrapalha nossas horas de lazer. Controlamos até a cor da roupa de baixo dos participantes de programas de “realidade” televisiva, mas não nos dispomos a verificar se, por exemplo, a forma de ensinar fração, proporção e percentagem nas escolas brasileiras é a melhor possível, para que os conceitos fiquem tão internalizados que os alunos consigam enfrentar essas questões básicas de Matemática do dia a dia com tanta facilidade quanto jogam futebol.

Seguimos celebridades vazias como se fizéssemos parte da vida delas, sem que elas sequer se dêem conta de nossa existência, mas bate uma preguiça danada quando temos que conhecer detalhes técnicos de uma política pública para poder contribuir com seu desenho ou apenas nos manifestar, seja contra ou a favor.

Acontece que o Brasil mudou e está claro que se o setor público não for vigiado tanto pelas instituições incumbidas de fazê-lo, quanto pelos eleitores e contribuintes, vai continuar nos brindando com serviços públicos pífios e transformando nossos impostos em carros, casas e viagens de luxo.

Assim, não tem outro jeito. Tem que participar. É preciso se informar. Para ajudar nossos leitores e ouvintes a começar ou a aprofundar sua participação no desenho, implementação e monitoramento das políticas públicas de seu interesse, vamos dar um curso relâmpago sobre o tema.

Ele começa com perguntas básicas que cada interessado, incluindo a imprensa, deve fazer aos gestores públicos quando eles apresentam um novo plano de trabalho ou política pública. Depois, tentaremos aplicá-las a um caso recente de alta visibilidade, a reestruturação das escolas da rede estadual de São Paulo.

  1. Qual é exatamente o problema que se está querendo resolver?
  2. Qual é exatamente a solução que está sendo proposta?
  3. Qual a relação de causa e efeito entre a solução que se propõe e o problema identificado?
  4. Quais são as opções que existem ou que já foram aplicadas em outros contextos similares para resolver problemas similares?
  5. Qual o custo para se implementar a solução proposta?
  6. Quem perde e quem ganha com o que foi proposto?

Uma evidênca da magnitude do sinal dos novos tempos: o Governo do Estado de São Paulo publicou um encarte de 8 páginas na revista Veja deste final de semana com explicações sobre a política de reestruturação da rede escolar no Estado (não sei se publicou em outras, pois essa foi a única que li). Detalhes sobre uma política pública de educação ocupando um espaço como esse não era comum até aqui. A Veja costuma dar espaço para soluções simples e baratinhas, normalmente modinhas importadas de outros países. Neste caso, o Governo comprou espaço para se explicar. Vamos usar o encarte para responder às perguntas, fazendo a primeira lição do nosso curso relâmpago. Não vou comentar minha opinião sobre as respostas. Apenas apresentá-las.

  • Qual é exatamente o problema que se está querendo resolver?
    • Diz o Estado de São Paulo que o ajuste “visa melhorar o atendimento a uma população que também está em constante mudança” – neste caso, diminuindo de tamanho.
  • Qual é exatamente a solução que está sendo proposta?
    • Reordenar as escolas separando o secundário (anos finais do ensino fundamental) do ensino médio
  • Qual a relação de causa e efeito entre a solução que se propõe e o problema identificado?
    • O Governo do Estado diz que os dados mostram que “estudantes de escolas de ciclo único têm rendimento até 28,4% superior quando comparados àqueles que estudam em unidades” com os dois ciclos. […] “Assim, os diretores poderão planejar […] atividades adequadas ao perfil dos alunos e garantir maior eficiência no uso dos recursos.”
    • “Com a reorganização, o Estado vai oferecer 30% a mais de vagas [de período integral] – serão 60 mil “
    • “A reorganização vai ampliar a jornada dos professores em uma única escola e diminuir o deslocamento desses profissionais.”
  • Quais são as opções que existem ou que já foram aplicadas em outros contextos similares para resolver problemas similares?
    • No encarte o Governo afirma que este é o mesmo modelo da Coreia do Sul, Cingapura, Inglaterra e Alemanha.
  • Qual o custo para se implementar a solução proposta?
    • Ainda não foi divulgado.
  • Quem perde e quem ganha com o que foi proposto?
    • Ainda não foi perguntado/avaliado de forma direta. O que vemos é que alguns alunos devem achar que não é bom, porque estão ocupando aproximadamente 200 escolas no Estado. O sindicato estadual de profesores e o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto também se manifestaram contra (a política ou o partido do Governador?) e estão ajudando a fechar escolas.

Continuando nosso curso, leiam essa entrevista do Ministro da Educação, Aloízio Mercadante, na Folha de São Paulo deste domingo. No resumo da entrevista são apresentados alguns dos temas nela abordados:

“A formação dos professores tem que se voltar para a prática, diz: “Se formássemos nossos médicos como formamos nossos professores, os pacientes morreriam”.

O ministro critica o desempenho das universidades que preparam os docentes —”principalmente no setor privado”— e diz que o MEC vai exigir contrapartidas para repassar as verbas dos programas federais.

Mercadante afirma que há simpatia à ideia de incluir o ensino profissionalizante no currículo do ensino médio e propõe vincular o Pronatec, de formação técnica, ao EJA, antigo supletivo.

Defende a política de dar prêmios em dinheiro a escolas e professores que atingirem metas e acha que entregar a administração escolar a Organizações Sociais (entidades privadas sem fins lucrativos) pode dar bom resultado.

Não apoia, no entanto, a política de “charter schools”, em que escolas privadas recebem do Estado para prestar o serviço da educação gratuita.”

A segunda lição do curso é: leia a entrevista completa e tente responder às perguntas acima. Boa sorte!

 

BNCC: o debate precisa ser mais detalhado para que tenha sucesso em contribuir para seu aprimoramento

Na semana passada esquentou um pouco o debate sobre o novo currículo nacional, ou a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), com comentários na impressa um pouco mais detalhados do que as aspas genéricas que a imprensa vinha coletando desde o lançamento da sua primeira versão em setembro.

As críticas mais objetivas à primeira versão apresentada pelo Ministério da Educação estão direcionadas ao conteúdo de História e de Língua Portuguesa. No de História os observadores externos ao MEC perceberam que a equipe que fez a primeira versão esqueceu de colocar conteúdos fundamentais para se entender a evolução de fatos históricos e questões sociais, políticas e econômicas no Brasil e no mundo de hoje, como aspectos da história da Europa e das Américas.

Em Língua Portuguesa faltou não só a Gramática (ou os apectos gerais da estrutura da língua, como ortografia, pontuação e sintaxe), mas também vocabulário e a evolução curricular na definição das habilidades de ouvir, ler e escrever textos úteis para a vida pessoal, profissional e cidadã dos alunos.

Entretanto, há um ponto ainda mais básico da discussão que ainda não vi esclarecido em lugar nenhum: a tal divisão 60/40 dos conteúdos, que esteve presente em 9/10 comentários sobre a BNCC. Fala-se de uma tal divisão 60/40 de alguma coisa que ainda não ficou clara. Na documentação e normativas já publicadas sobre o tema do currículo menciona-se a base nacional comum e da parte diversificada*. Mas não se diz o quanto haverá de cada um de forma clara.

Assim, apresento o meu entedimento sobre a questão da divisão do currículo com base na sua estrutura lógica e nas referências internacionais que venho estudando há anos.

Em relação à que lógica usar para separar o que é nacional do que é local em um currículo desenhado em âmbito nacional para um país grande e diverso como o Brasil, é preciso lembrar que em relação à Língua Portuguesa temos o seguinte:

  1. Gramática, que ficou de fora da primeira versão do currículo, interessa a todos os brasileiros. Conhecer os mecanismos da Língua oficial do País onde se vive é tanto uma questão de cidadania, quanto é escolar, profissional e até cultural. Saber como funciona uma língua permite parte de sua compreensão. A outra parte é a
  2. aquisição sistemática de vocabulário, que também ficou de fora da primeira versão.

Ambos (Gramática e aquisição sistemática de vocabulário amplo) devem ser parte da base comum a todos os alunos e escolas do Brasil. O que muda de um lugar para o outro são as obras com que se trabalha textos variados para aprender Gramática e vocabulário, além de aspectos históricos e culturais diversos, entre outras utilidades menos óbvias. Por exemplo, Machado de Assis pode ser de interesse nacional, enquanto que autores e obras mais localizados podem dar enorme contribuições para a motivação e interesse dos alunos na leitura.

Essa questão é facilmente resolvida com uma lista mínima de obras obrigatórias, na qual se pode fazer a divisão de interesses. Essa lista faz parte de a maior parte dos currículos que venho estudando. Para o caso brasileiro, a que mais interessa é a de Portugal. Sugiro a consulta.

Mas há uma divisão ligada ao currículo que é ainda mais estratégica: a divisão das horas de ensino dedicada a cada disciplina. Os países desenvolvidos perceberam que é muito mais importante desenvolver capacidades relacionadas à linguagem e matemática, que entupir os alunos de conteúdo. E aí o exemplo de Portugal, novamente uma referência para nós. Em Portugal as escolas têm, em média 25 horas letivas por semana. De acordo com o Decreto-Lei n.º 139/2012, NO MÍNIMO 7 horas de Língua Portuguesa + 7 horas de Matemática devem ser dadas por semana, totalizando 14 horas, ou 56% do tempo letivo das escolas.

Essa é a divisão que precisamos compreender melhor em relação ao currículo novo. As escolas brasileiras contam em média com 4 horas letivas por dia, ou 20 horas semanais, aí incluídos recreios e transições. Quando as autoridades educacionais brasileiras resolverem inserir Gramática e vocabulário vão ter que pensar nesse tipo de divisão.

 

http://www.dge.mec.pt/matriz-curricular-do-1o-ciclo-historico

* MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA. RESOLUÇÃO No 4, DE 13 DE JULHO DE 2010. Resolução CNE/CEB 4/2010. Diário Oficial da União, Brasília, 14 de julho de 2010, Seção 1, p. 824. Define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica.

CAPÍTULO II
FORMAÇÃO BÁSICA COMUM E PARTE DIVERSIFICADA

Art. 14. A base nacional comum na Educação Básica constitui-se de conhecimentos, saberes e valores produzidos culturalmente, expressos nas políticas públicas e gerados nas instituições produtoras do conhecimento científico e tecnológico; no mundo do trabalho; no desenvolvimento das linguagens; nas atividades desportivas e corporais; na produção artística; nas formas diversas de exercício da cidadania; e nos movimentos sociais.

  • 3o A base nacional comum e a parte diversificada não podem se constituir em dois blocos distintos, com disciplinas específicas para cada uma dessas partes, mas devem ser organicamente planejadas e geridas de tal modo que as tecnologias de informação e comunicação perpassem transversalmente a proposta curricular, desde a Educação Infantil até o Ensino Médio, imprimindo direção aos projetos político-pedagógicos.

Art. 15. A parte diversificada enriquece e complementa a base nacional comum, prevendo o estudo das características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da comunidade escolar, perpassando todos os tempos e espaços curriculares constituintes do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, independentemente do ciclo da vida no qual os sujeitos tenham acesso à escola.

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA. RESOLUÇÃO No 4, DE 13 DE JULHO DE 2010. Resolução CNE/CEB 4/2010. Diário Oficial da União, Brasília, 14 de julho de 2010, Seção 1, p. 824. Define Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica.

 

Algumas questões sobre a existência de uma Base Nacional Comum. Ou, simplificando, um currículo nacional para todas as escolas brasileiras é uma boa ideia?

O objetivo deste post é mostrar, com exemplos nacionais e internacionais, que a primeira proposta de BNCC apresentada à sociedade brasileira pelo Governo Federal, em primeiro lugar, não atende aos princípios legais que facultaram sua existência, mas, acima de tudo, apresenta um risco concreto para algumas das parcas conquistas que o País obteve na área da educação nas últimas décadas. Tratando-se de um tema tão complexo quanto desconhecido no contexto brasileiro, há que se investir algum tempo e palavras em sua exposição.

Em primeiro lugar, sendo ou não uma boa ideia, precisamos elaborar algum documento porque está previsto na no artigo 210 da Constituição Federal[1] e nos artigos 26 a 28 da LDB[2]. Entretanto, como se sabe, não é porque uma normativa está prevista em lei que torna-se vantajosa para a população ou para o desenvolvimento social e econômico do País. Uma lei só “pega” quando atende aos anseios da população, mesmo que esses estejam em fase latente. Um dos diferenciais de competência de um gestor público é identificar estratégias efetivas para materializar esse desenvolvimento de forma a atender as necessidades da população, desenhando, implementando e comunicando políticas que realmente melhorem o padrão de vida da maioria. Assim, precisamos urgentemente saber: é uma boa ideia ter um currículo nacional? A população anseia por isso?

A resposta à primeira pergunta é: depende. A da segunda é: não.

Depende, porque contar com um currículo nacional só ajudará a população brasileira a ter melhor padrão de vida se o documento trouxer informações e parâmetros úteis para os professores, equipes escolares e dirigentes de redes de ensino no sentido de fazer com que os alunos aprendam mais. Principal, mas não unicamente, a dominar de forma plena o uso da língua oficial e do raciocínio matemático. Para que esse objetivo complexo seja alcançado é essencial que as informações e parâmetros que comporão o novo currículo sejam redigidos com competência e intenção, tendo o aprendizado dos alunos obsessivamente como meta. Portanto, o novo currículo deverá ser mais detalhado e ambicioso que os existentes na maior parte dos estados e em muitos municípios Brasil afora.

A população não anseia por um currículo porque nem sabe o que seja um. Muito menos, no caso brasileiro, o que seja um currículo poderoso para fomentar o aprendizado efetivo dos alunos. Nem as famílias mais abastadas do Brasil sabem. Mesmo com muito dinheiro na mão, só uma parcela minimíssima da população entende que faz muita diferença no futuro de seus filhos ter parâmetros claros sobre o que o aluno vai aprender a cada período letivo e que eles estejam necessariamente alinhados com o que se pratica nos países desenvolvidos. Para a esmagadora maioria da população, confia-se cegamente nas escolas e professores a respeito do que se vai aprender durante os 14 anos ou mais de vida escolar. As notas de redação do ENEM[3], por exemplo, mostram que essa é uma aposta arriscada.

Mas as autoridades educacionais subnacionais minimamente antenadas pela responsabilidade de atender seus constituintes já tinham começado a se movimentar antes do Governo Federal. Portanto, a maior parte dos estados brasileiros já conta com alguma documentação curricular. O Estado do Acre é um deles e em 2009 publicou um conjunto de documentos curriculares[4] para sua rede. Essa documentação é uma das mais bem feitas do Brasil e obedece a uma estrutura lógica que apresenta os conteúdos curriculares e habilidades/objetivos pedagógicos da seguinte forma, para todas as disciplinas e todas as séries da educação básica[5]:

 

“Há uma relação muito estreita entre objetivos, conteúdos e atividades didáticas porque o conteúdo, selecionado em função do tipo de capacidade que se espera dos alunos, é ‘trabalhado’ a partir das propostas de atividade. Ou, dito de outro modo, é por meio das atividades que se trabalham os conteúdos para que sejam desenvolvidas as capacidades indicadas como objetivos. Dessa perspectiva, o conteúdo ‘está’ potencialmente no objetivo, porque é este que define o que é preciso ensinar e ‘está’ potencialmente na atividade, à medida que ela é uma forma de abordá-lo.

Nos quadros que se seguem, estão transcritos os objetivos apresentados anteriormente e indicados os conteúdos que permitem alcançá-los e alguns tipos de atividade. O propósito dessa forma de sistematização é contribuir com as escolas e com os professores para a organização do trabalho pedagógico. Evidentemente, aqui não estão relacionados todos os conteúdos e todas as atividades a serem propostas aos alunos, mas sim os ‘tipos’, como referências.”

Para ilustrar o esforço do Estado do Acre em fazer do currículo um documento útil e eficaz, transcrevo um extrato do que são, para o 5º ano do EF, os objetivos, conteúdos, atividades didáticas e formas de avaliação para auxiliar as escolas do Estado organizar o ensino da leitura. Os acreanos contam com as seguintes informações, entre uma enormidade de outras:

 

“Objetivos [Capacidades]

Ler, de modo autônomo e voluntário, textos correspondentes a diferentes gêneros selecionados para o ano[6], posicionando-se reflexiva e criticamente quanto aos sentidos construídos na leitura.

 

Conteúdos [O que é preciso ensinar explicitamente ou criar condições para que os alunos aprendam e desenvolvam as capacidades que são objetivos][7]

[…]

  • Interesse pela leitura como fonte de aprendizagem, informação, divertimento e sensibilização.
  • Escuta atenta de textos lidos em voz alta.
  • Valorização da diversidade cultural refletida em textos produzidos em diferentes regiões e épocas.
  • Adequação de estratégias de abordagem do texto em função de diferentes objetivos e das características dos gêneros.
  • Uso de dados textuais para confirmar ou retificar hipóteses levantadas, antes e ao longo da leitura, quanto ao conteúdo do texto.
  • Uso de múltiplas estratégias para resolver dúvidas quanto ao sentido do que foi lido: dedução do contexto, debate, consulta a diferentes fontes.

[…]

Propostas de atividade [Situações de ensino e aprendizagem]

[…]

Situações que exijam uso de diferentes estratégias de abordagem do texto (leitura pontual, item a item ou extensiva), de acordo com a finalidade do leitor:

– obtenção de informações precisas, sem considerar dados irrelevantes para o momento;

– pesquisa sobre um tema;

– domínio de regras ou de instruções para fazer algo;

– resolução de dúvidas;

– entretenimento;

– conhecimento da obra de autores escolhidos;

– ampliação do repertório de textos literários.

 

Formas de avaliação [Situações mais adequadas para avaliar]

Pelo professor

[…]

Observação e registro sistemático de como cada criança procede como leitor voluntário e autônomo, tanto em atividades semelhantes às relacionadas na coluna anterior como em situações de avaliação processual relativas aos objetivos estabelecidos para leitura.

Comparação contínua dos registros de acompanhamento da evolução da criança quanto a

– interesse em ouvir a leitura;

– interesse em dedicar-se à leitura;

– interesse em ler oralmente;

– participação nas atividades coletivas de comentário e apreciação de texto;

– seleção de textos que atendam a seus objetivos;

– utilização de estratégias adequadas para a compreensão dos diversos textos;”

 

Apenas a título de comparação, trago o exemplo do Estado mais industrializado da Federação, São Paulo, que também publica sua documentação curricular desde 2008[8]. Para o 1º bimestre do 5º ano, a rede de professores do Estado conta com a seguinte orientação para o ensino da leitura:

“Espera-se que, tendo como referência principal a tipologia narrativa, em situações de aprendizagem orientadas por projetos de leitura e escrita e centradas em histórias, romances, contos, crônicas e outros gêneros de tipologia predominantemente narrativa, os estudantes desenvolvam as seguintes habilidades:

  • Saber procurar informações complementares em dicionários, gramáticas, enciclopédias, internet etc.
  • Selecionar textos para a leitura de acordo com diferentes objetivos ou interesses (estudo, formação pessoal, entretenimento, realização de tarefas etc.).
  • Analisar a norma-padrão em funcionamento no texto.
  • Reconhecer o processo de composição textual como um conjunto de ações interligadas.
  • Inferir e reconhecer elementos da narrativa.
  • Analisar narrativas ficcionais: enredo, personagem, espaço, tempo e foco narrativo.
  • Produzir texto com organização narrativa.”

[…]

Competências de produção de textos (Saresp)

COMPETÊNCIA I – Tema – Desenvolver o texto de acordo com as determinações temáticas e situacionais da proposta de produção de texto.

COMPETÊNCIA II – Tipologia – Mobilizar, no texto produzido, os conhecimentos relativos aos elementos organizacionais da tipologia textual em questão.

COMPETÊNCIA III – Coesão/Coerência – Organizar o texto de forma lógica, demonstrando conhecimento dos mecanismos coesivos linguísticos e textuais necessários para a construção coerente do texto.

COMPETÊNCIA IV – Registro – Adequar as convenções e normas do sistema da escrita à situação comunicativa.”

 

Comparando os dois extratos, percebe-se a distância de concepções sobre o que seja um documento curricular e seus conteúdos. Mas é possível perceber em ambos a intenção de orientar o trabalho docente em cada território sob a responsabilidade de cada autoridade educacional.

Com exemplos como esses como referência e com o lançamento do site da BNCC trazendo uma bela organização das documentações curriculares dos estados, toda a legislação pertinente e até “ousando” incluir links para algumas referências estrangeiras, as minhas expectativas em relação ao que poderia vir aumentaram. Mas foram absolutamente frustradas quando, em 16 de setembro, o Governo Federal apresentou a primeira versão do documento. É um conjunto tão desconexo de coisas vagas, que a minha interpretação foi a de que havia se feito um movimento meio tosco de “mudar para não mudar”. Entrega-se qualquer coisa para que ninguém tenha que sair da sua medíocre zona de conforto.

A questão é que o texto, mesmo que muito ruim, vai ser uma normativa de ensino, com potencial para puxar ainda mais para baixo alguns componentes relevantes do sistema educacional brasileiro, como os livros didáticos e a formação docente. Inclusive, até para minar iniciativas mais audaciosas como a do Acre, pois seus sindicatos docentes podem não querer ensinar aquilo que foi estabelecido pela autoridade local e sim o NÃO CURRÍCULO proposto pela BNCC. Explicando, que autoridade podem ter os governos locais que estabeleceram seus currículos de forma mais responsável e meticulosa, se em nível federal poderosos sindicalistas tomaram o poder e desqualificaram o que seja uma documentação curricular séria?

Selecionei, para o mesmo 5º ano, o que a BNCC apresenta como habilidades ou objetivos pedagógicos a serem desenvolvidos ao longo dessa série, que se “parecem” com atividades de escrita. Sim, parecem, porque de tal forma a intenção ao escrever o documento era não permitir que um currículo de verdade fosse apresentado à sociedade brasileira, que é difícil entender o que cada item propõe para escolas, docentes e gestores. É só conferir. A BNCC apresenta para Língua Portuguesa as habilidades ou objetivos pedagógicos, divididos em eixos esdrúxulos, sem par no Planeta Terra[9].

Para o 5º ano são 23 deles e apenas 5 trazem alguma pista de que são atividades de escrita. Eles estão listados a seguir, com seus devidos códigos:

“LILP5FOA011

Produzir narrativa literária, usando adequadamente diferentes modos de introduzir a fala de personagens, em função do efeito pretendido.

LILP5FOA020

Registrar resultados de estudos e pesquisas por meio de diários de campo, relatos, fichas informativas, mapas, relatórios de experiência, tabelas, quadros, gráficos.

LILP5FOA021

Produzir roteiros de pesquisa para diferentes componentes curriculares, considerando a especificidade das tarefas.

LILP5FOA023

Produzir e-mails, mensagens, registros fotográficos e audiovisuais para postagem em espaços como chats, twitter, blogs, utilizados para atividades escolares.

LILP5FOA016

Produzir abaixo-assinados ou cartas reclamatórias, usando recursos argumentativos, tais como justificativa de motivos e explicitação de reivindicações.”

 

Basta lê-los para perceber que não há o que corrigir ou adaptar. O documento de Língua Portuguesa tem que ser refeito.

Enquanto isso, na França, os eixos da língua oficial do País para a mesma 5ª série (alunos de 11 anos) são apresentados por meio dos seguintes eixos: linguagem oral, leitura, literatura, escrita (transcrição), redação, vocabulário, gramática e ortografia. Cada um detalhado ano a ano, e em cada ano apresentando apenas o que deve ser aprendido de novo, de forma cumulativa com o que foi apresentado para os períodos letivoa anteriores. As habilidades de de escrita (transcrição) do 5º ano no currículo francês são as seguintes:

 

“Escrita – Copiar um texto de pelo menos quinze linhas, sem erros, dando-lhe uma apresentação adequada.”

 

Para entender como funciona o currículo francês, só observando a progressão da habilidade. No terceiro 3º ano (dois anos antes), o mesmo aluno deveria ter aprendido:

 

“Copiar sem erro (formação de letra, ortografia, pontuação) um texto de cinco a dez linhas, com apresentação caprichada; especificamente, transcrever com capricho, um poema ou prosa ou aprendido [nas atividades de] recitação[10].”

 

No mesmo 3º ano, enquanto nossos alunos estão rabiscando as primeiras letras segundo o PNAIC[11], o aluno francês deverá:

 

“Nas várias atividades escolares, apresentar respostas explícitas e enunciadas de forma correta; redigir uma narrativa curta, assegurando sua coerência temporal (tempo verbal) e sua precisão (na nomeação dos personagens e uso de adjetivos), evitando repetições por meio do uso de sinônimos, respeitando as regras de sintaxe, ortografia e pontuação; escrever diálogos curtos (formulação de perguntas, de solicitações); ampliar uma frase, acrescentando e coordenando as palavras, de um nome para o outro, de um adjetivo para o outro; aprimorar a escrita (corrigí-la e enriquecê-la) por meio da ajuda e observações feitas pelo professor.”

 

Especificar o que deve ser aprendido (e não apenas ensinado) é uma tendência dos países desenvolvidos cujas autoridades educacionais decidiram se comprometer tanto com a excelência, quanto com a equidade. Essa intenção pode-se materializar de diferentes formas no currículo, mas há muitas estruturas em comum. A seguir o exemplo de UM ITEM do eixo de escrita da Base Comum americana para escrita no 5º ano:

 

“Redigir textos de opinião sobre tópicos ou textos, fundamentando um ponto de vista com explicações e informações.

 

1) Apresentar o tema ou texto de forma clara, declarar uma opinião e criar uma estrutura de organização na qual as ideias são agrupadas logicamente de maneira a fundamentar o propósito do autor.

2) Apresentar razões logicamente ordenadas e fundamentadas em fatos e detalhes.

3) Dar coesão entre as opiniões e explicações por meio de palavras, frases e períodos (por exemplo, consequentemente, especificamente, etc.)

4) Apresentar um parágrafo ou declaração a título de conclusão que esteja relacionado com a opinião apresentada.”

 

E no 8º ano deverão redigir um argumento da seguinte forma:

 

“Redigir argumentos para embasar proposições apresentando um racional claro e provas pertinentes:

1) Apresentar  proposição(ões), distinguindo-a(s) de outras proposições alternativas ou opostas, claramente identificadas, organizando explicações e evidências de forma lógica.

2)  Embasar  proposição(ões) por meio do raciocínio lógico e do uso de evidências relevantes, utilizando fontes com credibilidade que ajudem a demonstrar a compreensão a respeito do tópico ou texto.

3) Utilizar palavras, frases e períodos para dar coesão às ideias e informações e esclarecer as relações entre as proposições e contra-proposições, explicações e evidências.

4) Estabelecer e manter um estilo formal.

5) Apresentar um parágrafo ou declaração a título de conclusão que seja resultado e que tenha como base os argumentos apresentados.”

 

Percebe-se, então, que os alunos americanos vão aprender a fazer um texto argumentativo não só de maneira mais clara e fundamentada, mas com três anos de vantagem em relação aos seus colegas brasileiros.

Sinceramente, não acho que o documento é incompetente por acaso. Há muito mais gente com algum poder junto às autoridades educacionais federais brasileiras cujo interesse é que as escolas no Brasil continuem a não ensinar muito aos alunos e a não incomodar os docentes, do que pessoas dispostas a estudar teoria e prática de currículo para ajudar os brasileiros a se libertarem da opressão, da mediocridade e da injustiça social. São lobos em pele de cordeiro, com discurso tão raso quanto simpático. Sair da zona de conforto é incômodo. Assim como seria ter uma população capaz de fazer redações argumentativas aos milhões ao final do 8º ano.

[1] Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

  • 1º – O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
  • 2º – O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

 

[2] Art. 26.  Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos.   (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013)

  • 1º Os currículos a que se refere ocaputdevem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil.
  • 2o O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos.(Redação dada pela Lei nº 12.287, de 2010)
  • 3oA educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno:(Redação dada pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

I – que cumpra jornada de trabalho igual ou superior a seis horas; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

II – maior de trinta anos de idade; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

III – que estiver prestando serviço militar inicial ou que, em situação similar, estiver obrigado à prática da educação física; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

IV – amparado pelo Decreto-Lei no 1.044, de 21 de outubro de 1969(Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

V – (VETADO) (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

VI – que tenha prole. (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

  • 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.
  • 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição.
  • 6o A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular de que trata o § 2odeste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.769, de 2008)
  • 7o Os currículos do ensino fundamental e médio devem incluir os princípios da proteção e defesa civil e a educação ambiental de forma integrada aos conteúdos obrigatórios.    (Incluído pela Lei nº 12.608, de 2012)

Art. 26-A.  Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena(Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).

  • 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.(Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
  • 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.(Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).

Art. 27. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes:

I – a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática;

II – consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento;

III – orientação para o trabalho;

IV – promoção do desporto educacional e apoio às práticas desportivas não-formais.

Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente:

I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural;

II – organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;

III – adequação à natureza do trabalho na zona rural.

[3] Em 2012, por exemplo, apenas 1,1% das pessoas que fizeram a redação do ENEM tiram nota cima de 900. Esse escore significa que uma pessoa que concluiu o ensino médio consegue escrever um texto simples de argumentação, cometendo apenas poucos erros de Gramática e Ortografia.

[4] http://www.see.ac.gov.br/portal/index.php/documentos-2/category/2-orientacoes-curriculares

[5] CADERNO 1 – Orientações Para o Ensino de Língua Portuguesa e Matemática no Ciclo Inicial. Rio Branco, Acre. 2008

[6] A documentação curricular do Acre conta com tabelas de seleção de gêneros textuais por série

[7] abaixo segue apenas uma pequena seleção para facilitar o entendimento do nível de detalhe a que se pode chegar

 

[8] http://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/782.pdf

[9] práticas da vida cotidiana – campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita, próprias de atividades do dia a dia, no espaço doméstico/familiar, escolar, cultural, profissional que crianças, jovens e adultos vivenciam;

práticas artístico-literárias – campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita, na criação e fruição de produções literárias, representativas da diversidade cultural e linguística, que favoreçam experiências estéticas;

práticas político-cidadãs – campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita, especialmente de textos das esferas jornalística, publicitária, política, jurídica e reivindicatória, contemplando temas que impactam a cidadania e o exercício de direitos;

práticas investigativas – campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita de textos que possibilitem conhecer os gêneros expositivos e argumentativos, a linguagem e as práticas relacionadas ao estudo, à pesquisa e à divulgação científica, favorecendo a aprendizagem dentro e fora da escola;

práticas culturais das tecnologias de informação e comunicação – campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita de textos que possibilitem a comunicação a distância e a compreensão de características e modos de produzir, divulgar e conservar informação, experimentar e criar novas linguagens e formas de interação social;

práticas do mundo do trabalho – campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita de textos que possibilitem conhecer os gêneros, a linguagem e as práticas relacionadas ao mundo do trabalho, bem como discutir temáticas relativas ao trabalho na contemporaneidade.

 

[10] Sim, faz parte do currículo francês aprender a recitar em público

[11] http://pacto.mec.gov.br/2012-09-19-19-09-11

COMPETÊNCIA IV – Registro – Adequar as convenções e normas do sistema da escrita à situação comunicativa”

Comparando os dois extratos, percebe-se a distância de concepções sobre o que seja um documento curricular e seus conteúdos. Mas é possível perceber em ambos a intenção de orientar o trabalho docente em cada território sob a responsabilidade de cada autoridade educacional.

Com exemplos como esses como referência e com o lançamento do site da BNCC trazendo uma bela organização das documentações curriculares dos estados, toda a legislação pertinente e até “ousando” incluir links para algumas referências estrangeiras, as minhas expectativas em relação ao que poderia vir aumentaram. Mas foram absolutamente frustradas quando, em 16 de setembro, o Governo Federal apresentou a primeira versão do documento. É um conjunto tão desconexo de coisas vagas, que a minha interpretação foi a de que havia se feito um movimento meio tosco de “mudar para não mudar”. Entrega-se qualquer coisa para que ninguém tenha que sair da sua medíocre zona de conforto.

A questão é que o texto, mesmo que muito ruim, vai ser uma normativa de ensino, com potencial para puxar ainda mais para baixo alguns componentes relevantes do sistema educacional brasileiro, como os livros didáticos e a formação docente. Inclusive, até para minar iniciativas mais audaciosas como a do Acre, pois seus sindicatos docentes podem não querer ensinar aquilo que foi estabelecido pela autoridade local e sim o NÃO CURRÍCULO proposto pela BNCC. Explicando: que autoridade podem ter os governos locais que estabeleceram seus currículos de forma mais responsável e meticulosa, se em nível federal poderosos sindicalistas tomaram o poder e desqualificaram o que seja uma documentação curricular séria?

Selecionei, para o mesmo 5º ano, o que a BNCC apresenta como habilidades ou objetivos pedagógicos a serem desenvolvidos ao longo dessa série, que se “parecem” com atividades de escrita. Sim, parecem, porque de tal forma a intenção ao escrever o documento era não permitir que um currículo de verdade fosse apresentado à sociedade brasileira, que é difícil entender o que cada item propõe para escolas, docentes e gestores. É só conferir. A BNCC apresenta para Língua Portuguesa as habilidades ou objetivos pedagógicos, divididos em eixos esdrúxulos, sem par no Planeta Terra[9].

Para o 5º ano são 23 deles e apenas 5 trazem alguma pista de que são atividades de escrita. Eles estão listados a seguir, com seus devidos códigos:

“LILP5FOA011 Produzir narrativa literária, usando adequadamente diferentes modos de introduzir a fala de personagens, em função do efeito pretendido.

LILP5FOA020 Registrar resultados de estudos e pesquisas por meio de diários de campo, relatos, fichas informativas, mapas, relatórios de experiência, tabelas, quadros, gráficos.

LILP5FOA021 Produzir roteiros de pesquisa para diferentes componentes curriculares, considerando a especificidade das tarefas.

LILP5FOA023 Produzir e-mails, mensagens, registros fotográficos e audiovisuais para postagem em espaços como chats, twitter, blogs, utilizados para atividades escolares.

LILP5FOA016 Produzir abaixo-assinados ou cartas reclamatórias, usando recursos argumentativos, tais como justificativa de motivos e explicitação de reivindicações.”

Basta lê-los para perceber que não há o que corrigir ou adaptar. O documento de Língua Portuguesa tem que ser refeito.

Enquanto isso, na França, os eixos da língua oficial do País para a mesma 5ºsérie (alunos de 11 anos) são apresentados por meio dos seguintes eixos: linguagem oral, leitura, literatura, escrita (transcrição), redação, vocabulário, gramática e ortografia. Cada um detalhado ano a ano, e em cada ano apresentando apenas o que deve ser aprendido de novo, de forma cumulativa com o que foi apresentado para os períodos letivos anteriores. As habilidades de de escrita (trancrição) do 5º ano no currículo francês são as seguintes:

“Escrita – Copiar um texto de pelo menos quinze linhas, sem erros, dando-lhe uma apresentação adequada.”

Para entender como funciona o currículo francês, só observando a progressão da habilidade. No terceiro ano (dois anos antes), o mesmo aluno deveria ter aprendido a:

“Copiar sem erro (formação de letra, ortografia, pontuação) um texto de cinco a dez linhas, com apresentação caprichada; especificamente, transcrever com capricho, um poema ou prosa ou aprendido [nas atividades de] recitação[10].”

No mesmo 3º ano, enquanto nossos alunos estão rabiscando as primeiras letras segundo o PNAIC[11], o aluno francês deverá:

“Nas várias atividades escolares, apresentar respostas explícitas e enunciadas de forma correta; redigir uma narrativa curta, assegurando sua coerência temporal (tempo verbal) e sua precisão (na nomeação dos personagens e uso de adjetivos), evitando repetições por meio do uso de sinônimos, respeitando as regras de sintaxe, ortografia e pontuação; escrever diálogos curtos (formulação de perguntas, de solicitações); amplar uma frase, acrescentando e coordenando as palavras, de um nome para o outro, de um adjetivo para o outro; aprimorar a escrita (corrigí-la e enriquecê-la) por meio da ajuda e observações feitas pelo professor”

Especificar o que deve ser aprendido (e não apenas ensinado) é uma tendência dos países desenvolvidos cujas autoridades educacionais decidiram se comprometer tanto com a excelência, quanto com a equidade. Essa intenção pode-se materializar de diferentes formas no currículo, mas há muitas estruturas em comum. A seguir o exemplo de UM ITEM do eixo de escrita da Base Comum americana para escrita no 5º ano:

“Redigir textos de opinião sobre tópicos ou textos, fundamentando um ponto de vista com exlicações e informações.

1) Apresentar o tema ou texto de forma clara, declarar uma opinião e criar uma estrutura de organização na qual as idéias são agrupadas logicamente de maneira a fundamentar o propósito do autor.

2) Apresentar razões logicamente ordenadas e fundamentadas em fatos e detalhes.

3) Dar coesão entre as opiniões e explicações por meio de palavras, frases e períodos (por exemplo, consequentemente, especificamente, et c.)

4) Apresentar um parágrafo ou declaração a título de conclusão que esteja relacionado com a opinião apresentada”

E no 8º ano deverão redigir um argumento da seguinte forma:

“Redigir argumentos para embasar proposições apresentando um racional claro e provas pertinentes:

1) Apresentar  proposição (ões), distinguindo-a (s) de outras proposições alternativas ou opostas, claramente identificadas, organizando explicações e evidências de forma lógica

2)  Embasar  proposição (ões)  por meio do raciocínio lógico e do uso de evidências relevantes, utilizando fontes com credibilidade que ajudem a demonstrar a compreensão a respeito do tópico ou texto

3) Utilizar palavras, frases e períodos para dar coesão às ideias e informações e esclarecer as relações entre as proposições e contra-proposições, explicações e evidências.

4) Estabelecer e manter um estilo formal

5) Apresentar um parágrafo ou declaração a título de conclusão que seja resultado e que tenha como base os argumentos apresentados”

Percebe-se, então, que os alunos americanos vão aprender a fazer um texto argumentativo não só de maneira mais clara e fundamentada, mas com três anos de vantagem em relação aos seus colegas brasileiros.

Sinceramente, não acho que o documento é incompetente por acaso. Há muito mais gente com algum poder junto às autoridades educacionais federais brasileiras cujo interesse é que as escolas no Brasil continuem a não ensinar muito aos alunos e a não incomodar os docentes, do que pessoas dispostas a estudar teoria e prática de currículo para ajudar os brasileiros a se libertarem da opressão, da mediocridade e da injustiça social. São lobos em pele de cordeiro, com discurso tão raso quanto simpático. Sair da zona de conforto é incômodo. Assim como seria ter uma população capaz de fazer redações argumentativas aos milhões ao final do 8º ano.

[1] Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.

  • 1º – O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
  • 2º – O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

[2] Art. 26.  Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos.   (Redação dada pela Lei nº 12.796, de 2013)

  • 1º Os currículos a que se refere ocaputdevem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil.
  • 2o O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos.(Redação dada pela Lei nº 12.287, de 2010)
  • 3oA educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno:(Redação dada pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

I – que cumpra jornada de trabalho igual ou superior a seis horas; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

II – maior de trinta anos de idade; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

III – que estiver prestando serviço militar inicial ou que, em situação similar, estiver obrigado à prática da educação física; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

IV – amparado pelo Decreto-Lei no 1.044, de 21 de outubro de 1969(Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

V – (VETADO) (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

VI – que tenha prole. (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)

  • 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia.
  • 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição.
  • 6o A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular de que trata o § 2odeste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.769, de 2008)
  • 7o Os currículos do ensino fundamental e médio devem incluir os princípios da proteção e defesa civil e a educação ambiental de forma integrada aos conteúdos obrigatórios.    (Incluído pela Lei nº 12.608, de 2012)

Art. 26-A.  Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena(Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).

  • 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.(Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
  • 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.(Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).

Art. 27. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes:

I – a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática;

II – consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento;

III – orientação para o trabalho;

IV – promoção do desporto educacional e apoio às práticas desportivas não-formais.

Art. 28. Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região, especialmente:

I – conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos alunos da zona rural;

II – organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas;

III – adequação à natureza do trabalho na zona rural.

[3] Em 2012, por exemplo, apenas 1,1% das pessoas que fizeram a redação do ENEM tiram nota cima de 900. Esse escore significa que uma pessoa que concluiu o ensino médio consegue escrever um texto simples de argumentação, cometendo apenas poucos erros de Gramática e Ortografia.

[4] http://www.see.ac.gov.br/portal/index.php/documentos-2/category/2-orientacoes-curriculares

[5] CADERNO 1 – Orientações Para o Ensino de Língua Portuguesa e Matemática no Ciclo Inicial. Rio Branco, Acre. 2008

[6] A documentação curricular do Acre conta com tabelas de seleção de gêneros textuais por série

[7] abaixo segue apenas uma pequena seleção para facilitar o entendimento do nível de detalhe a que se pode chegar

 

[8] http://www.educacao.sp.gov.br/a2sitebox/arquivos/documentos/782.pdf

[9] práticas da vida cotidiana – campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita, próprias de atividades do dia a dia, no espaço doméstico/familiar, escolar, cultural, profissional que crianças, jovens e adultos vivenciam;

práticas artístico-literárias – campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita, na criação e fruição de produções literárias, representativas da diversidade cultural e linguística, que favoreçam experiências estéticas;

práticas político-cidadãs – campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita, especialmente de textos das esferas jornalística, publicitária, política, jurídica e reivindicatória, contemplando temas que impactam a cidadania e o exercício de direitos;

práticas investigativas – campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita de textos que possibilitem conhecer os gêneros expositivos e argumentativos, a linguagem e as práticas relacionadas ao estudo, à pesquisa e à divulgação científica, favorecendo a aprendizagem dentro e fora da escola;

práticas culturais das tecnologias de informação e comunicação – campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita de textos que possibilitem a comunicação a distância e a compreensão de características e modos de produzir, divulgar e conservar informação, experimentar e criar novas linguagens e formas de interação social;

práticas do mundo do trabalho – campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita de textos que possibilitem conhecer os gêneros, a linguagem e as práticas relacionadas ao mundo do trabalho, bem como discutir temáticas relativas ao trabalho na contemporaneidade.

[10] Sim, faz parte do currículo francês aprender a recitar em público

[11] http://pacto.mec.gov.br/2012-09-19-19-09-11

Puxão de orelha da UNESCO: vamos vestir a carapuça?

Na semana passada em Paris foi lançado o documento “Plano de Ação para Educação 2030” (em inglês) que detalha as ações e metas para a continuidade e aprofundamento da Campanha Global conhecida como Educação para Todos ou Education For All em inglês.

Como apenas 1/3 dos países signatários do documento inicial cumpriu as metas até 2015, o que já vinha sendo detalhado e cobrado dos chefes de estado e das autoridades educacionais agora fica ainda mais claro como base para os próximos 15 anos.

A imprensa brasileira repercutiu apenas o que foi resumido pela EBC – Agência Brasil, dando a entender que a grande questão tinha sido o Brasil se comprometer com um patamar de gastos, mas a notícia é muito mais importante que isso.

Recapitulando, em maio de 2015 no Fórum Mundial de Educação, foi elaborada a Declaração de Incheon (em português) que representa o compromisso dos países signatários com uma agenda global de educação chamada de Educação 2030. Na declaração, a UNESCO ficou encarregada de conduzir e coordenar sua materialização, embora cada país seja responsável por implementá-la e custeá-la.  Na semana passada, no dia 4/11, em Paris (sede da Unesco), novamente as entidades participantes* se reuniram para elaborar e divulgar o Plano de Ação, que é a continuação, mais detalhada e ambiciosa, das ações necessárias para fazer avançar a educação no mundo de forma que ela seja universalizada segundo os seguintes princípios:

A educação é um direito humano fundamental e um direito que habilita a fruição dos demais direitos humanos – portanto, ela deve ser  inclusiva universal e equitativa e de qualidade, garantindo a aprendizagem, ser gratuita e obrigatória, não deixando ninguém para trás.

A educação é um bem público e dever do Estado. Mesmo que seja um esforço compartilhado pela sociedade, é dependente da formulação de políticas públicas.

Igualdade de gêneros é fundamental para garantir a educação realmente para todos

São 43 metas com indicadores muito claros sobre o que cada país deve fazer para alcançar a educação para todos sob esses princípios. Como por exemplo:

Para garantir que meninos e meninas tenham acesso e concluam a educação primária e secundária, os parâmetros que medem linguagem e matemática terão de convergir para conceitos similares do que seja proficiência mínima nessas áreas

Da mesma forma, o progresso dos alunos deve ser medido durante e no final do ensino primário e no final do secundário em avaliações de cada país

A conclusão e a progressão devem ser monitoradas nessas etapas e as idades de conclusão e de cada etapa também devem convergir

Monitoramento das crianças e jovens que sofrem qualquer tipo de abuso ou negligência nas escolas – existe uma pesquisa mundial para medir essas questões nas escolas (ONU) e (Centers for Disease Control and Prevention) mas o Brasil ainda não participa delas.

O mais urgente agora é que o Governo Brasileiro não só traduza o documento, como dê visibilidade ampla a ele e até crie comissões permanentes de monitoramento de sua evolução com a ajuda da Unesco no Brasil para que nos próximos relatórios possa começar a rever as mazelas educacionais que ainda nos assombram.

* Organizado conjuntamente com o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD), o Fundo das Nações Unidas para Populações (UNFPA), o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Género e Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres), e o Banco Mundial