Arquivos Mensais: outubro \26\America/Sao_Paulo 2015

Políticas regressivas: hora de mudar

Percebemos no dia a dia que o Brasil é um país atrasado. Economicamente atrasado? não muito. Tecnologicamente atrasado? Certamente que não, desde que analisemos um setor cuja clientela possa pagar pelos avanços tecnológicos recentes. Socialmente atrasado? Sem dúvida. A nossa sociedade não só aceita, como se regozija com o que hoje é considerado inaceitável em muitos países. Racismo e machismo nas relações pessoais, patrimonialismo e nepotismo no setor público e privado – todos os tipos de opressão e desequilíbrio de poder exercidos por pessoas e grupos mais fortes e poderosos sobre os mais fracos e vulneráveis

Obviamente essa cultura da desigualdade reflete-se nas relações do Estado (nas suas instâncias federal, estaduais  e municipais) com a sociedade. O uso do Estado para oprimir os mais fracos não se dá apenas pelo exercício do monopólio da violência, mas principalmente, agora que somos uma democracia, pela captura dos recursos de todos os contribuintes para depois distribuí-los de maneira injusta por políticas públicas ou mal desenhadas e implementadas ou bem desenhadas, mas para beneficiar poucos em detrimento de muitos.

Um dos setores onde se vê claramente como todos pagam e poucos se beneficiam é a educação. No nível básico, temos um atendimento não universalizado (mesmo que compulsório de 4 a 17 anos) cuja má qualidade expulsa praticamente a metade dos alunos antes da conclusão do ensino médio – todo mundo paga, mas só alguns saem com o diploma. Os contribuintes pagam impostos para as novas gerações aprenderem, mas pouquíssimos aprendem o suficiente para resultar em mão de obra qualificada ou em cidadãos antenados e ativos para resguardar seus próprios direitos. No ensino superior público, a qualidade não é muito melhor mas como o processo é muito seletivo e um bom diploma dá acesso à remuneração bem vantajosa, temos menor evasão proporcional. Mais uma vez, muitos pagam e só poucos se beneficiam. O grande potencial regressivo das universidades públicas é aferido por uma contraposição de custos com benefícios.

Um excelente artigo do Professor Charles Mady, publicado no Jornal o Estado de S. Paulo em 21/10/2015, expõe esse potencial para a área das políticas públicas de Medicina e faz um paralelo com as da Educação. Gastamos fortunas com as universidades, mas as políticas públicas  de interesse majoritário são apenas marginalmente pautadas por boas evidências produzidas por seus acadêmicos, ou mesmo por proposições de desenho e avaliação delas. Há exceções, óbvio. Mas a contribuição dos acadêmicos de instituições públicas deveria ser a regra: formar bons professores (e no caso do argumento do artigo, médicos), pesquisar soluções eficazes e eficientes para problemas recorrentes ou crônicos do setor público, melhorar a qualidade do ensino – tudo que o conhecimento, a prática docente e a pesquisa podem apresentar para aprimorar o bem comum e o padrão de vida de quem depende dos serviços do Estado.

Ao conjunto das políticas públicas que tiram de todos para só dar a alguns, ou tiram dos mais pobres para dar aos menos pobres e aos ricos, damos o nome de políticas regressivas. Somos bons nisso em vários setores do Estado brasileiro. O livro a Previdência Injusta, de Brian Nicholson mostra de maneira muito didática essa prática no setor da Previdência. Temos ainda a generosidade do BNDES com grandes empresas e um monte de outros exemplos.

Mas uma Proposta de Emenda à Constituição pode dar uma contribuição para mitigar o caráter regressivo da educação superior pública brasileira. O Brasil é amplamente criticado internacionalmente por manter o desenho do financiamento das universidades públicas para poucos alunos e ainda menos professores do jeito que é hoje. Ou seja, um grupo seleto de estudantes garante seu acesso aos melhores empregos enquanto um grupo ainda mais seleto de docentes trabalha sem dar satisfação a ninguém, em nome de uma autonomia sem limites. Quem mais paga a conta, fica de fora.

PEC 395/2014, que altera a redação do inciso IV do art. 206 da Constituição Federal no que se refere à gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais para “gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais de educação básica e, na educação superior, para os cursos regulares de graduação, mestrado e doutorado“. A PEC, portanto, suspenderia o princípio da gratuidade apenas para as atividades de extensão caracterizadas como cursos de treinamento e aperfeiçoamento, assim como os cursos de especialização. Mesmo assim, já é um avanço.

A tramitação ainda continua, mas assim como outros paradigmas que precisamos repensar, privilégios de poucos com dinheiro de muitos que precisamos abolir, é preciso redesenhar as políticas educacionais. Se a universidade é pública, que dê preferência aos mais pobres por meio de bolsas e cotas. Que exija de seus acadêmicos uma maior contribuição para o aprimoramento de políticas também públicas. O que temos hoje não é justo para quem paga a conta, mas é privilégio para quem se beneficia.

Comentários sobre o Programa de Combate à Intimidação Sistemática (Bullying) aprovado pela Câmara dos Deputados

A Câmara dos Deputados aprovou na semana passada o Programa Nacional de Combate à Intimidação Sistemática que define o que seja e cria mecanismos para esclarecer o que pode ser caracterizado como intimidação sistemática, combater e coibir essa prática social, conhecida pela expressão em inglês: bullying

Em primeiro lugar, é interessante traduzir a definição de dicionário do que seja bullying em inglês, porque é mais que uma intimidação sistemática. É a opressão cruel de uma pessoa mais frágil por outra mais forte, (ou hierarquicamente superior) com o objetivo de se conseguir algo. Esse comentário é importante porque no debate na Câmara houve a inclusão de um detalhe no texto de definição do que sejam esses atos de bullying que pode fazer alguma diferença ao dizer que “considera-se intimidação sistemática (bullying) todo ato de violência física ou psicológica, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente“. A questão é que dessa forma o bullying pode ser não reconhecido se houver uma razão aparente. Só não sabemos que razão poderia ser.

É difícil compreender porque uma pessoa decide intimidar a outra, seja em escolas ou no ambiente de trabalho. Para quem não está dentro da cabeça do agressor que pratica a intimidação, nem mesmo quem a sofre, não fica claro porque ela ocorre. E aí fica mais difícil indentificá-la e combatê-la. Principalmente quando o agressor é sutil. A lei é um avanço porque faz uma tipificação clara, que abre caminho para se uma série de ações sistemáticas que também estão no texto do Projeto de Lei, mas ainda há um longo caminho a se trilhar para que a prática seja banida não só da convivência entre crianças e jovens, mas da de adultos também.

O fundamental é saber que o agressor é uma pessoa que se sente intimidada pelo agredido, ou porque ele é mais inteligente, mais bonito, mais rico, mais amado, mais popular, o que seja. Algo no agredido detona sentimentos de ódio e inveja no agressor e de natureza tão forte que o processo se inicia. Assim, para prevenir os atos de bullying, é preciso também identificar a “agenda” do agressor.

O texto da lei aprovada, que segue agora para sanção presidencial, diz o seguinte:

Art. 2º Caracteriza-se a intimidação sistemática (bullying) quando há violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação ou discriminação e, ainda: I – ataques físicos; II – insultos pessoais; III – comentários sistemáticos e apelidos pejorativos; IV – ameaças por quaisquer meios; – grafites depreciativos; VI – expressões preconceituosas; VII – isolamento social consciente e premeditado; VIII – pilhérias.

Parágrafo único. Há intimidação sistemática na rede mundial de computadores (cyberbullying), quando se usarem os instrumentos que lhe são próprios para depreciar, incitar a violência, adulterar fotos e dados pessoais com o intuito de criar meios de constrangimento psicossocial.

Art. 3º A intimidação sistemática (bullying) pode ser classificada, conforme as ações praticadas, como: I – verbal: insultar, xingar e apelidar pejorativamente; II – moral: difamar, caluniar, disseminar rumores; III – sexual: assediar, induzir e/ou abusar; IV – social: ignorar, isolar e excluir; V – psicológica: perseguir, amedrontar, aterrorizar, intimidar, dominar, manipular, chantagear e infernizar; VI – físico: socar, chutar, bater; VII – material: furtar, roubar, destruir pertences de outrem; VIII – virtual: depreciar, enviar mensagens intrusivas da intimidade, enviar ou adulterar fotos e dados pessoais que resultem em sofrimento ou com o intuito de criar meios de constrangimento psicológico e social.

Já existiam outras leis no âmbito de estados e municípios, mas é importante ter uma nacional, com um texto claro, que não restringe a tipificação da intimidação às escolas (inclui clubes e agremiações recreativas) e que também prevê uma lista de ações sistemáticas de forma a proteger os interesses de alunos e jovens em geral do ataque de pessoas sem limites para suas frustrações.

Dos filhos deste solo és mãe gentil, Pátria Educadora?

No imaginário dos brasileiros o adjetivo gentil não costuma combinar com o educador(a). Se uma pessoa é gentil, acolhedora e atenciosa, não pode ser educadora. Para se ser educador é preciso ser autoritário, ríspido, distante e chato. Deve ser por isso que quando se fala em educação formal sempre tem alguém para propor relativização do que seja formal, em geral para desqualificar as disciplinas escolares e propor inovações divertidas, lúdicas e que evoquem o prazer imediato. O que depende do esforço, da dedicação, do mérito, é chato, antiquado e educador. O gentil é o que é solto, espontâneo. Na minha opinião essa percepção, além de equivocada, causa enorme tensão entre as famílias e as escolas.

A Constituição brasileira diz que a educação é responsabilidade conjunta do Estado e da família. Mas as famílias são muito diferentes entre si na sua capacidade de educar seus filhos para a uma vida adulta privada responsável e para a vida pública cidadã e do trabalho. Além disso, há uma parte da educação que é praticamente exclusiva, ou, no mínimo, preponderantemente, escolar. Ou seja, é institucionalizada e, portanto, dependente de formalização.

É na escola que aprendemos a falar, a ler e a escrever de acordo com as normas formais da língua e que serão exigidas para o mundo do trabalho. Em particular para os postos melhor remunerados. O domínio da língua oficial de um país  também é essencial para o pleno exercício da vida cidadã e até para a plena fruição de bens culturais e de entretenimento mais amplos. Sem nem mencionar Matemática e outras disciplinas da área de Ciências.

Assim, há uma parte da educação que é responsabilidade das famílias e outra que é das escolas. Isso nunca ficou muito claro no contexto brasileiro. Ora as escolas reclamam que a educação foi inteiramente “terceirizada” para elas, sem que as famílias se preocupem em dar o mínimo de noções de civilidade para seus filhos, ora são as famílias que se opõem a conteúdos de educação sexual, política ou histórica que afrontam seus próprios valores.

A existência de um currículo complementado por um conjunto de documentos normativos ajuda a especificar o que as escolas (institucionalizadas e reguladas pelo governo) podem oferecer aos seus alunos. Muitas vezes até com informações para ajudar as famílias a incutir em seus filhos processos comportamentais e cognitivos que ajudam na colaboração mútua entre famílias e escolas, em prol da formação das novas gerações.

Cada país acha seu caminho, mas o mundo é cada vez mais integrado. Na hora de elaborar suas legislações internas, as nações levam em consideração acordos multilaterais, tendências de desenvolvimento global e aprendem uns com os outros.

O governo federal brasileiro toma as decisões que julga melhor. Mas seria interessante manter-se em linha com o que fazem países industrializados e democráticos, porque, imagina-se, até pela própria Constituição brasileira, que é o que desejamos ser um dia.

Este blog parte desta premissa, a de que os brasileiros, na sua maioria, querem viver sob um regime democrático no sentido político, econômico e social e melhorar seu padrão de vida, o que cada vez mais é dependente de conseguir formar adultos com capacidade cognitiva e produtiva de alto padrão. Ou não?

Outra premissa que considero óbvia é a de que não é necessário reinventar a roda e que podemos “sapear” o que países mais desenvolvidos que nós já fizeram para termos, no mínimo, fontes de inspiração qualificada. Trago hoje o exemplo da França.

O tema continua a ser o currículo nacional brasileiro, cujo embrião foi lançado no mês passado pelo Ministério da Educação. Minha opinião é de que o documento é tão tosco que chega a ser desrespeitoso com os brasileiros. Não é ideologia simplesmente, é corporativismo puro. Na Língua Portuguesa jogaram uma cortina de fumaça para disfarçar uma lista de competências risíveis, de tão mal definidas, ou por serem simplesmente impróprias para se aprender na escola, como conhecer emoticons e o internetês.

Já presenciei profissionais da educação dizerem que currículo formal é uma política neoliberal, ou gerencialista, ou de direita e coisas do gênero. Dá vergonha ouvir argumentações tão rasas vindas de educadores.

Assim, trago hoje o exemplo de um País “teteia” dos acadêmicos da educação que se dizem de esquerda ou progressistas, a França. A França tem, desde o início de 2012, um governo Socialista, que se seguiu a um “neoliberal”. O neoliberal publicou um currículo detalhado e o socialista, que resolveu refundar a escola republicana francesa, não só o manteve, como restringiu as prioridades escolares ao domínio da língua oficial e à Matemática e a atenção máxima aos anos iniciais da educação escolar.

Tudo bem que nós, brasileiros, estamos quase sem governo. Mas, pelo menos, o setor de educação deveria estudar com atenção o que se faz nos países desenvolvidos. Aqueles vêm, genuinamente, buscando dar oportunidades educacionais mais equitativas às suas populações, justamente por meio da especificação do que se deve aprender e da priorização do domínio da língua oficial e da Matemática. Todos usam formas MUITO PARECIDAS de fazer isso. O Brasil fugiu do formato e do conteúdo. Para mim, só há uma conclusão: é um subterfúgio para continuar se esquivando da obrigação de fornecer educação escolar de qualidade à toda população. Ao deixar o que é mais complexo e inerente ao ambiente escolar de fora do currículo, o governo federal devolve às famílias a responsabilidade de descobrir o que é essencial. Só vai conseguir fazer isso, um tipo muito específico de família. Adivinhem qual….

Abaixo seguem as especificações do currículo francês para o último ano da educação elementar ou primária, à qual estão obrigados os alunos de 10 anos. Ou seja, equivalente à seriação brasileira.

Para esta etapa, a língua oficial francesa é apresentada por meio de mapas de progressão detalhados nos seguintes eixos ou temas: linguagem oral, leitura, escrita, redação, literatura, vocabulário, gramática e ortografia.

Será que a nossa Pátria Educadora vai ser mãe de todos os seus filhos? Ou porque quer ser mãe, não vai ser educadora?

(coloquei os textos no idioma original na frente de cada item para quem resolver estudar, poder retraduzir da forma que achar melhor, assim como os links para acessar todo o conteúdo da França)

Note-se que escrita é diferente da redação.

Para o último ano da educação elementar ou primária em escrita, temos:

Na escrita:

  • Copier sans erreur un texte d’au moins quinze lignes en lui donnant une présentation adaptée.
  • Copiar sem erro um texto, de, pelo menos quinze linhas, dando-lhe uma apresentação adaptada.

Redação é um eixo à parte, que merece mais detalhamento:

  • Dans les diverses activités scolaires, prendre des notes utiles au travail scolaire.
  • Nas diversas atividades escolares, tomar notas úteis para o trabalho da escola.
  • Maîtriser la cohérence des temps dans un récit d’une dizaine de lignes.
  • Dominar a consistência do tempo em uma história de dez linhas.
  • Rédiger différents types de textes d’au moins deux paragraphes en veillant à leur cohérence, en évitant les répétitions, et en respectant les contraintes syntaxiques et orthographiques ainsi que la ponctuation.
  • Escrever diferentes tipos de textos de pelo menos dois parágrafos assegurando sua coerência, evitando repetições e respeitando as restrições de sintaxe e ortografia, assim como a pontuação.
  • Écrire un texte de type poétique en obéissant à une ou plusieurs consignes précises.
  • Escrever um texto poético obedecendo a um ou mais instruções específicas.

E é separada da aquisição de vocabulário:

Acquisition du vocabulaire :

  • Commencer à utiliser des termes renvoyant à des notions abstraites (émotions, sentiments, devoirs, droits).
  • Começar a utilizar os termos relativos a conceitos abstratos (emoções, sentimentos, deveres, direitos).
  • Comprendre des sigles.
  • Entendimento de siglas.
  • Maîtrise du sens des mots
  • Dominar os significados das palavras
  • Distinguer les différents sens d’un verbe selon sa construction (ex. jouer, jouer quelque chose, jouer à, jouer de, jouer sur).
  • Distinguir os diferentes significados de um verbo de acordo com a sua construção (por exemplo. Jogar um jogo, jogar no sentido de arremessar)
  • Identifier l’utilisation d’un mot ou d’une expression au sens figuré.
  • Identificar o uso de uma palavra ou expressão em sentido figurado.
  • Classer des mots de sens voisin en repérant les variations d’intensité (ex. bon, délicieux, succulent).
  • Organizar de palavras significado semelhante, identificando as variações na intensidade (ie. Bom, deliciosa, suculenta).
  • Définir un mot connu en utilisant un terme générique adéquat et en y ajoutant les précisions spécifiques à l’objet défini.
  • Definir uma palavra conhecida usando um termo genérico apropriado e adicionando informações específicas para o objeto definido.

Por sua vez detalhada em relação às famílias das palavras:

  • Regrouper des mots selon leur radical.
  • Reagrupar palavras de acordo com seus radicais
  • Regrouper des mots selon le sens de leur préfixe et connaître ce sens, en particulier celui des principaux préfixes exprimant des idées de lieu ou de mouvement.
  • Reagrupar as palavras de acordo com seu prefixo e compreender seu sentido, especialmente a dos grandes prefixos que expressam localização ou movimento.
  • Regrouper des mots selon le sens de leur suffixe et connaître ce sens.
  • Reagrupar as palavras de acordo com seus sufixos e compreender seu significado.
  • Pour un mot donné, fournir un ou plusieurs mots de la même famille en vérifiant qu’il(s) existe(nt).
  • Para uma determinada palavra, apresentar uma ou mais palavras da mesma família, certificando-se de que existe(m).

http://www.education.gouv.fr/cid92069/annee-scolaire-2015-2016.html

http://www.education.gouv.fr/pid25535/bulletin_officiel.html&cid_bo=87834

http://eduscol.education.fr/cid58402/progressions-pour-l-ecole-elementaire.html

Clique para acessar o Progression-pedagogique_Cycle2_Francais_203786.pdf

Clique para acessar o Progression-pedagogique_Cycle3_Francais_203759.pdf

Os Paralamas no MEC: uma breve análise da disciplina Língua Portuguesa na nova Base Nacional Comum

Assaltaram a gramática

Assassinaram a lógica

Meteram poesia, na bagunça do dia-a-dia

Sequestraram a fonética

Violentaram a métrica

Meteram poesia onde devia e não devia

Na primeira vez que vi a Base Nacional Comum (BNC) no dia de seu lançamento oficial, fiquei chocada. Não tinha mesmo grandes expectativas, do tipo que nosso governo federal fosse alinhar as expectativas de aprendizagem do País com as de nações industrializadas e democráticas que fizeram reformas curriculares recentes, nem mesmo as que estão listadas no próprio site do MEC para a base. Mas analisei em profundidade muitos currículos estaduais e municipais brasileiros. Não achei que uma proposta nova em nível nacional pudesse ser pior (menos organizada, especificada e útil para os professores brasileiros). Mas é.

Passados uns dias, conluí que minhas expectativas irrealistas derivavam de um lapso de memória. Não tinha ainda feito um paralelo mental com a trajetória da política de alfabetização na idade certa, que começou no município de Sobral nos anos 2000 e que hoje alfabetiza a maior parte das crianças por volta dos 6 anos. Quando foi transposta para o governo federal, atrasou a alfabetização para os 8 anos, transformando-a numa política de alfabetização na idade errada.

Depois de alguns dias com o assunto sendo processado na minha cabeça, à procura de uma descrição suscinta que pudesse ser facilmente entendida por quem ainda não trilhou o mesmo caminho de estudo de teoria e prática de currículos que eu, lembrei-me da estrofe acima, da deliciosa música dos Paralamas do Sucesso que pululava em nossas cabeças nos anos 1980. Os versos descrevem o que o MEC fez com a parte do novo currículo nacional que apresenta as expectativas de aprendizagem para nada menos que a Língua Portuguesa. Gramática relegada, nada de lógica e muita poesia. Onde devia e não devia.

Vamos ver por quê.

Antes de mais nada, é necessário alinhar um entendimento muito básico a respeito do que seja um currículo e para que ele serve. Um currículo é uma NORMATIVA EDUCACIONAL ESCOLAR. A educação escolar é a educação institucionalizada. Não é a educação que se faz em casa ou na vida. É a educação regulamentada pelo governo e vivida no dia a dia em instituições formais que são obrigadas a cumprir a regulação e a legislação vigente que lhes é pertinente.

Um currículo escolar é uma forma institucionalizada de uma determinada sociedade, comunidade ou governo expressar o que espera que as escolas façam pelas novas gerações. O que outras instituições como ongs, igrejas, projetos e familias fazem pelas suas crianças e jovens não diz respeito à escola, embora, como diz nossa Constituição no Art. 205 do Capítulo III – EDUCAÇÃO, DA CULTURA E DO DESPORTO:

“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

Serve, portanto, o currículo escolar da educação básica para:

  • Na sala de aula: contribuir para a elaboração de planos de aula, de atividades de avaliação, de acompanhamento e de intervenções pedagógicas
  • Na gestão escolar: compartilhar e unificar planos de aula para os mesmos objetivos pedagógicos, trocar experiências quanto às mehores práticas para cumprir os objetivos pedagógicos, acumulando conhecimento; definir necessidades de formação docente e de intervenções pedagógicas para além da sala de aula
  • Na rede de ensino, criar parâmetros racionais de: alocação responsável de recursos materiais e humanos, definição de qualidade e quantidade da infraestrutura, dos materiais didáticos, escolares e afins, definições sobre sistemas de apoio social e educativo nas demais áreas do Executivo, definições sobre a qualidade e quantidade de recursos humanos, seleção e formação docente e afins, definição da seleção de material didático e para-didático,
  • Na nação, compartilhar a visão a respeito de: qual o nível de recursos que deve estar disponível para educação, qual a contribuição de cada recurso para a implementação do currículo desejado, qual o status do professor na sociedade

As reformas curriculares sistemáticas do Séc. XX começaram com Margareth Tatcher nos anos 1980, porque ela queria ver as escolas “rendendo mais”. Mas, apesar de terem começado um pouco mais à direita no espectro ideológico, foram fazendo cada vez mais sentido para os governos da ponta oposta, como uma boa ferramenta de garantir a equidade. O advento do Pisa no início dos anos 2000 expôs mazelas educacionais que estavam escondidas em muitos países (inclusive no Brasil) e muitos deles (mas não o Brasil) começaram a fazer alterações substanciais em suas políticas educacionais, num movimento contínuo que persegue insessantemente a equidade sim, mas a partir da excelência. Mesmo que seus indicadores educacionais já fossem muito melhores que os brasileiros.

Nós, com raras e honradíssimas exceções, mantivemo-nos alijados desses processos de reforma pela qualidade: nosso recente PNE é o retrato da falta de vontade política em mudar de patamar de desempenho. Decidimos apenas pela mudança de patamar de gastos.

Mas já está ficando meio vergonhoso ficar de fora das tendências educacionais dos países desenvolvidos e começamos finalmente a nos movimentar na direção de um currículo nacional. Claro que a possibilidade de nascer uma linda jaboticaba, autóctone e rara, não estava descartada. E, pelo menos para Língua Portuguesa, foi exatamente que o governo federal fez. (Além de a chance para o corporativismo escapar de um currículo sério. Mas isso é assunto para um outro post)

Vamos ver como.

Um currículo escolar de caráter abrangente (no nosso caso, nacional), para conseguir cumprir com as funções descritas acima com competência, precisa ter uma estrutura muito bem montada, com os objetivos acima sempre atendidos a cada camada de informação que se desdobra. Das referências internacionais que estudei, a mais clara e sucinta de todas é a dos EUA, que inclusive não quer ser chamada de currículo, mas de “cerne comum” a tradução de Common Core, seu nome oficial em inglês.

Mesmo assim, as demais referências estudadas: Austrália, Ontário, Portugal e Reino Unido, assim como as referências nacionais estudadas mais a fundo (CE, PE e Acre) utilizam, de forma implícita ou explícita, uma estrutura de apresentação da nossa língua materna compatível entre si e subdividida por: oralidade, leitura, escrita e gramática (ou regras/estrutura formal da língua). O componente jabuticaba presente em muitas documentações curriculares estudadas fica por conta do uso do eixo “gênero textual” para se sobrepor “à camisa de força autoritária da gramática”. Os trechos abaixo foram tirados da publicação PARÂMETROS CURRICULARES DE LÍNGUA PORTUGUESA, do Estado de Pernambuco, de 2012 e ainda vigente:

“O Eixo 2, da Análise Linguística, ao ser colocado como eixo vertical, indica o deslocamento, para segundo plano, daquilo
que tradicionalmente constituiu o ensino de Português nas escolas brasileiras, pelo menos até a década de 70, sem
muito questionamento: o trabalho com a metalinguagem. Os conteúdos gramaticais – o estudo do verbo, das conjunções, das estruturas sintáticas, dos recursos semânticos etc. – são, além de recolocados, redimensionados, ou seja, ganham um novo lugar e um outro sentido. Em substituição aos exercícios de nomeação e classificação dos recursos da língua, em lugar dos estudos normativos, os estudantes são envolvidos em atividades de análise e reflexão sobre o seu uso e funcionamento em textos e contextos diversos, tendo em vista seu aprimoramento como leitor, ouvinte, falante e escritor. As práticas de ensino de linguagem articulam, portanto, atividades que contemplam os usos da língua e atividades
de reflexão sobre esses usos.” (pg. 16-17)

“Neste documento, defende-se que o conhecimento das regularidades sistêmicas da língua seja alvo de análise e reflexão. No entanto, o foco numa concepção interacionista da linguagem indica maior interesse na compreensão do funcionamento da língua do que no conhecimento do código linguístico. Conforme já sinalizado, o estudo das categorias e estruturas gramaticais dá lugar ao estudo do texto, que passa a ser o objeto central das práticas de linguagem, de forma coerente com a compreensão de que a língua se realiza a partir de textos.” (pg. 20)
A defesa do respeito às e do estudo das regras da gramática não é feita para que elas sirvam apenas como instrumentos de avaliações do conhecimento de regras em si, com uma palmatória à mão para aqueles que não as decorarem, mas sim porque conhecer e aplicar as regras de gramática na comunicação oral e escrita é crucial para se avançar nas demandas de uma educação de qualidade, inclusive no ensino superior a na vida profissional, como propõe nossa Constituição.

Antes de apresentar o formato jabuticaba de apresentação da Língua Portuguesa na BNC, é importante explicar que, em todos esses países estudados, o foco no aprendizado dos mecanismos da língua oficial e da matemática são tidos como cruciais e ninguém imagina que se faça mais nada com os alunos enquanto eles não dominarem essas duas áreas. No final das contas, governos de todos os espectros ideológicos deram razão à Lady Tatcher, que queria exatamente isso. Pelo menos até que a educação estivesse cumprindo seu papel social, inclusive com os mais pobres.

Alguns países, como Portugal e Austrália, prevêem até um limite mínimo de horas de instrução dessas duas disciplinas-chave, que, em geral, é de pelo menos 50% do tempo letivo. Lembramos que, no contexto jaboticabal brasileiro temos como mínimo 4 horas letivas por dia, por 200 dias letivos por ano, totalizando 800 horas de potencial exposição a conteúdos escolares estruturados, a cada período de 365 dias.

Vamos, então, ao que propõe a nossa nova Base Nacional Comum

O nosso governo progressista começa inovando muito, de forma relevante, trocando o termo “disciplina” por componente curricular. O (agora ex) Ministro da Educação explicou, em um evento recente, que tinha acabado de aprender que disciplina é um termo autoritário. Obrigada, MEC! Deve ser porque usamos o termo disciplina até agora que nossa sociedade é tão injusta. Quem sabe, agora vai?!?

Assim, para continuar inovando e contribuir enormemente para o avanço da educação brasileira, o MEC substituiu ORALIDADE, LEITURA, ESCRITA E GRAMÁTICA (ou termos equivalentes) por:

  • Práticas da vida cotidiana
    • Campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita, próprias de atividades do dia-a-dia, no espaço doméstico/familiar, escolar, cultural, profissional que crianças, jovens e adultos vivenciam;
  • Práticas artístico-literárias
    • Campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita, na criação e fruição de produções literárias, representativas da diversidade cultural e linguística, que favoreçam experiências estéticas;
  • Práticas político-cidadãs
    • Campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita, especialmente de textos das esferas jornalística, publicitária, política, jurídica e reivindicatória, contemplando temas que impactam a cidadania e o exercício de direitos;
  • Práticas investigativas
    • Campo de atuação que diz respeito à participação em situações de leitura/escuta, produção oral/escrita de textos que possibilitem conhecer os gêneros expositivos e argumentativos, a linguagem e as práticas relacionadas ao estudo, à pesquisa e à divulgação científica, favorecendo a aprendizagem dentro e fora da escola;

Pela descrição de cada eixo, os incautos podem achar que os eixos não foram substituídos, mas rearranjados, repaginados, mas que está tudo lá. Ou seja, na hora H, no frigir dos ovos, vamos achar na nova proposta nacional todos, ou boa parte, dos componente curriculares, expectivas de aprendizagem e objetivos pedagógicos que permitem ao documento se materializar no dia a dia escolar de forma a cumprir suas funções, já apresentadas acima.

SQN!!

Uma breve comparação com uma referência nacional (para ser fofa) e deixo-os a sós com as evidências do crime duplamente qualificado de assalto à Gramática com assassinato da Lógica:

A documentação curricular do Acre, que não cometeu nenhum crime (embora esteja longe de ser um documento efetivo), propõe o seguinte para o 5º ano  (Orientações Curriculares para o Ensino Fundamental CADERNO 1 – 5º ano, 2009)

“Identificação, em diferentes momentos do processo de produção textual, da necessidade de:
– substituir elementos característicos da linguagem oral ou inadequados à situação comunicativa por algum outro motivo;
– eliminar informações redundantes ou contraditórias e introduzir informações ausentes;
– empregar formas verbais mais eficazes para expressar diversas ideias relativas a tempo;
– fazer ajustes variados quanto à coesão (referencial e sequencial);

– corrigir inadequações referentes às convenções escritas.”

“Revisão coletiva ou em pequeno grupo com determinado foco (texto preparado pelo professor ou versão de texto de uma criança, já corrigida quanto aos demais aspectos):
– especificidades do gênero;
– adequação ao destinatário;
– suficiência, relevância e articulação de informações;
– estratégias de coesão e coerência textual (pontuação, uso de conjunções e outros conectivos, substituição lexical, pronominalização, emprego de tempos verbais etc.);
– precisão e riqueza lexical;
– ortografia, entre outros”. (pg. 35)

Para adoçar o feito, a nova BNC diz na introdução à disciplina de Língua Portuguesa o seguinte:

“Com relação ao eixo escrita, os objetivos de aprendizagem de Língua Portuguesa envolvem: 1) reflexões sobre as situações sociais em que se escrevem textos, para o desenvolvimento da valorização da escrita e a ampliação de conhecimentos sobre as práticas de linguagem nas quais a escrita está presente; 2) desenvolvimento de estratégias de planejamento, reescrita, revisão e avaliação dos textos, considerando-se a sua adequação às variedades linguísticas; 3) reflexões sobre os gêneros textuais adotados nas situações de escrita, considerando-se os aspectos sociodiscursivos, temáticos, composicionais e estilísticos; 4) reflexões sobre os recursos linguísticos empregados nos textos, considerando-se as convenções da escrita e as estratégias discursivas planejadas em função das finalidades pretendidas.”

Entretanto, PARA TODO O 5º ano do ensino fundamental apresenta, COMO PROPOSIÇÃO DE HABILIDADES DE ESCRITA, apenas os seguintes objetivos pedagógicos:

LILP5FOA011

Produzir narrativa literária, usando adequadamente diferentes modos de introduzir a fala de personagens, em função do efeito pretendido;

LILP5FOA016

Produzir abaixo-assinados* ou cartas reclamatórias, usando recursos argumentativos, tais como justificativa de motivos e explicitação de reivindicações;

Esse padrão de NÃO NORMATIZAÇÃO DAS HABILIDADES DE ESCRITA se repete por todos os anos da educação básica. Nossas autoridades educacionais federais fizeram escolhas. O que apresento aqui foi a lógica dessas escolhas. A outra, apenas para ficar dentro do que descreve a estrofe dos Paralamas, é a de que a escola é um lugar para se apreciar e operar, principalmente, a poesia. Adoro poesia, mas parece que o MEC errou na mão: das 140 habilidades propostas, 24 mensionam diretamente a poesia (17%). No 9º ano, são 5 de 15, ou 30%. A estrofe realmente cai como uma luva. . .

E não que não se tenha tido apreço por detalhes. O que houve foi uma seleção do que se desejava detalhar:

Segue abaixo uma habilidade a ser desenvolvida no 2º ano do EM. Percebe-se que os detalhes ficaram para aquilo que não é essencial ou inerente à escola, mas aquilo que os alunos podem dominar SEM SEQUER IR À ESCOLA. Ou alguém espera qus os jovens brasileiros vão esperar, respectivamente, para chegar oa 2º ou ao 3º ano do ensino médio para aprender o que se propõe na BNC?!?!?!

“LILP2MOA015

Analisar as práticas que envolvem o leitor como navegador virtual, a partir dos mecanismos de busca e a seleção de links de visitação, diante dos diversos serviços de informação (acervos artísticos e literários, bibliotecas e museus virtuais), bem como a realização de variadas ações sociais cotidianas (comprar, namorar), considerando a natureza multimodal predominante na linguagem digital.”

“LILP3MOA013

Analisar as postagens nas redes sociais, inclusive o “internetês”, na perspectiva da variação linguística, considerando alguns de seus elementos (como as abreviaturas de palavras, a estruturação de frases, os emoticons);

Ok, MEC. Já temos uma BNC para normatizar o que se aprende fora da escola. Estamos aguardando a partir de agora as habilidades a serem desenvolvidas em profundidade DENTRO DA ESCOLA.

* propor abaixo-assinado como atividade pedagógica de escrita é uma piada pronta, ou uma pegadinha?! Como sabemos, em um abaixo-assinado, uma pessoa escreve algo simples e as outras só assinam. Propor essa atividade no 5º ano é para dar uma oportunidade para os que só sabem escrever o nome participarem?