Arquivos Mensais: agosto \31\America/Sao_Paulo 2017

MEC citando Sobral x CNE: um arremedo de vontade política sendo atacado pelo corporativismo desavergonhado

É chocante, mas ainda tem gente que, em plena luz do dia e ocupando cargo público, tem coragem de defender a escravatura cognitiva de crianças pobres.

Leiam esta notícia sobre a disputa do MEC com o CNE sobre a alfabetização, cujos destaques mostro a seguir:

Enquanto o MEC só tem coragem suficiente para dizer que o aluno vai estar alfabetizado até o fim do 2º ano do Fundamental, quando seus pares de países desenvolvidos já chegam ao 1º ano (quando estão por volta dos 6 anos) praticamente alfabetizados, apenas consolidando alguns processos, como ler palavras mais longas e desconhecidas e escrever textos usando palavras conhecidas escritas com correspondência fonética, o CNE resolve brincar de fazer oposição ao Governo Temer, jogando para sua própria claque inconformada e usando o interesse das crianças brasileiras como escudo.

Abaixo segue a posição do MEC, declarada por sua Secretária Executiva, Maria Helena Guimarães de Castro.

“Defendemos a alfabetização até o final do 2º ano, quando a criança tem 8 anos. A posição do CNE é diferente, mas por enquanto não há nenhuma decisão tomada.”

Vejam a posição do CNE:

O conselheiro do CNE Cesar Callegari reafirma que ainda não houve deliberação, mas este é um ponto de discordância. “O CNE não deliberou a respeito disso. É um tema que está sendo levantado nas audiências públicas, mas ainda vamos produzir pareceres que vão a voto. O CNE é contrário [à alfabetização no 2º ano], mas não houve deliberação. O assunto está em discussão.”

Como é que é, cara pálida?? O CNE é contrário à alfabetização ser concluída no 2º ano?? Baseado em que tipo de dado, informação, pesquisa??

Bom, eu também sou, mas porque as pesquisas e os dados de avaliação mostram que a maioria das crianças dos países desenvolvidos E AS CRIANÇAS QUE TÊM A SORTE DE MORAR EM SOBRAL, NO SERTÃO DO CEARÁ, APRENDEM, entre os 5 e 6 anos de idade, a decodificar as letras e sílabas, a compreender o que leem, a redigir textos simples e que fazem sentido para elas e seus pares!

Essa posição de deixar para os pobres o rebotalho é a cara da sociedade arcaica brasileira da qual queremos nos livrar. Que o CNE venha defender essa posição com base nos dados e no que se pratica em países desenvolvidos, civilizados e mais igualitários, que é o que a população brasileira quer ser um dia. Dizer que é contra porque os municípios vão reprovar as crianças é um argumento tosco: as crianças são reprovadas porque não sabem ler e, muito menos, escrever, mesmo em séries mais avançadas!

O que o CNE está tentando resguardar é o interesse de sindicatos de professores que não querem níveis mais ambiciosos de desempenho discente, porque isso fará todo mundo trabalhar mais e exporá seu despreparo garantido por escolas de professores que são máquinas de emitir diplomas ou de fazer lavagem cerebral. Com essa posição, o CNE defende também boa parte dos acadêmicos que usam de suas “pesquisas” com rigor metodológico suficiente apenas para sustentar suas posições politico-técnicas e de suas bibliografias mofadas e totalmente ultrapassadas, para garantir que ninguém tenha coragem de se interpor ou desmascarar suas “verdades” com dados empíricos e atualizados.

A matéria reproduz a posição chocante de “especialistas” que dizem:

Está em jogo, segundo especialistas, o embate entre usar os anos do ensino infantil para atividades lúdicas que estimulam os pequenos a reconhecerem sua identidade e se interessarem em aprender sobre o mundo, ou para estimular o aprendizado conteudista, visto por muitos adultos como sinônimo de sucesso profissional.

É só ler as publicações mais recentes sobre como as crianças aprendem e como se ensina educação infantil que se percebe que NÃO EXISTE MAIS A DICOTOMIA brincar x aprender, pois a concepção desta etapa é aprender brincando. O pior é que as pessoas que falam esse tipo de barbaridade usam pele de cordeiro – são modernas e progressistas, só querem limitar o que as crianças POBRES podem aprender para o bem delas. Educação infantil de qualidade custa caro, o dinheiro vai sair da pós graduação e vai para as salas de aula dos pobres: é isso que incomoda. Nada mais…

Que tal esta lista de referências para pelo menos os jornalistas entenderem do que estamos falando?

Clique para acessar o EL2013ResourceList.pdf

Que tal estre trecho do Programa de Pre-escola de Ontário:

Play is a vehicle for learning and rests at the core of innovation and creativity. It provides opportunities for learning in a context in which children are at their most receptive. Play and academic work are not distinct categories for young children, and learning and doing are also inextricably linked for them. It has long been acknowledged that there is a strong link between play and learning for young children, especially in the areas of problem solving, language acquisition, literacy, and mathematics, as well as the development of social, physical, and emotional skills (NAEYC, 2009; Fullan, 2013; Ontario Ministry of Education, 2014c).

Young children actively explore their environment and the world around them through play. When children are exploring ideas and language, manipulating objects, acting out roles, or experimenting with various materials, they are engaged in learning through play. Play, therefore, has an important role in learning and can be used to further children’s learning in all areas of the Kindergarten program.

Vou entrar para o clube dos pessimistas: não há capital político no Brasil para lutar pela educação de qualidade

No dia 4 de agosto último, a TV Globo exibiu um Globo Repórter sobre educação e superação, contanto casos de como pessoas com perfis absolutamente distintos descobriram para si um mar de possibilidades pessoais e profissionais por meio da educação, para responder à pergunta: até onde a educação pode nos levar?

Eu sempre impliquei com esse tipo de reportagem, que aborda políticas públicas por meio de personagens, porque reforça o caráter individualista da superação pela educação escolar. Esse tipo de herói, que sobrevive e vence sozinho as condições de absurda desigualdade e pobreza no nosso Brasil do séc. XXI, normaliza o “cada um por si”. O País deveria estar se organizando (ou melhor, já estar organizado) para tornar a superação inter-geracional dessas mazelas por meio da educação a regra, jamais a exceção.

Antes de seguir, não posso deixar de fazer um parênteses, pois a superação da D. Alezina e D. Therezinha, personagens idosas do Globo Repórter de sexta, que aprenderam a ler e descobriram seus talentos, começando uma nova vida depois dos 70, 80 anos, mostra que a educação é sim para todos. Todo mundo merece uma educação de qualidade, que, não esqueçamos, é um direito humano universal!

Mas, voltando à edição do Globo Repórter, cuja produção – Assimina Vlahou e  Isabela Assumpção – está de parabéns, o viés fui justamente mostrar o desperdício de talentos e de capital humano pela falta da educação. E aí eles chegaram no único exemplo no Brasil que tornou a alfabetização de todos os alunos uma obsessão: Sobral. A partir da alfabetização, os alunos foram aprendendo cada vez mais e hoje a cidade apresenta o maior Ideb do Brasil nas duas etapas do ensino fundamental. TODAS as escolas de Sobral estão acima do esperado para a Prova Brasil. Infelizmente, por causa da cultura de mediocridade que nos assola, os indicadores nacionais exigem muito pouco dos alunos. Até isso agora Sobral vai inovar: a partir de um novo currículo de ensino fundamental (que meus leitores já conhecem) a nova obsessão vai ser alcançar seus pares em países desenvolvidos.

Mas a questão é que é só em Sobral. Minha tese de doutorado está estudando o caso. Já estou há 3 anos trabalhando em Sobral e estudando seus mecanismos de qualidade e não tem jeito: educação de qualidade é, antes de tudo, uma escolha política. Sem a escolha de enfrentar os interesses contrários, não se implementa nenhum programa, mesmo que já testado em outros lugares – muito menos por longos períodos no tempo. No discurso, todos são a favor de uma educação de alta qualidade. Mas na prática, quando a farinha é pouca, cada um garante seu pirão primeiro. Sindicatos não querem deixar que sejam criados parâmetros de aprendizado para os alunos ou de desempenho para os profissionais da educação. Empregadores de boa parte dos setores econômicos não querem abrir mão de mão-de-obra barata. Há famílias que não estão dispostas a fazer os sacrifícios ilustrados pela reportagem. E há muitos alunos que também sofrem de uma preguiça mental crônica, só que essa é justamente responsabilidade do sistema educacional resolver. Só acha que educação de qualidade é uma prioridade quem está exposto aos ambientes competitivos internacionais. Temos que concordar que é uma parcela mínima da população que realmente conhece o valor de uma educação competitiva e libertadores, mas que não tem, ou não quer usar, capital político.

A questão é que não há vontade política suficiente para resolver essa questão cara, trabalhosa, cujos benefícios não aparecem antes da próxima eleição. Se não damos conta de resolver com seriedade os problemas mais óbvios e urgentes com medo da conta de votos não fechar no próximo pleito, é claro que durante as próximas décadas não vai aparecer ninguém para vencer os interesses contrários aos do Matheus, André, D. Therezinha, personagens do Globo Repórter. Os políticos alinham-se a sindicatos e aos maiores empregadores, pois esses têm capilaridade para lhes conseguir votos, além de verbas para a campanha. Infelizmente, depois da minha tese estou entrando para o clube dos pessimistas. Só respiro otimismo quando vejo as luzinhas de Sobral na estrada da minha janela do Expresso Guanabara…

Respondendo ao Sérgio Chapelin: a educação brasileira vai nos levar até onde os políticos deixarem.