O que pode dar errado com a BNCC se seguirmos os passos do estado de Nova Iorque nos EUA

Reportagem de Fábio Takahashi na Folha de São Paulo (Caderno Ilustríssima) de domingo, 7 de maio, faz um paralelo especulativo entre a implementação de um currículo único nos Estados Unidos a partir de 2010 e o que pode acontecer no Brasil a partir de 2019 com a obrigatoriedade de se adotar a BNCC nas escolas brasileiras.

O jornalista, que há anos cobre o setor de educação para o Jornal e está passando um período acadêmico na Universidade de Columbia, na cidade de Nova Iorque, estado de Nova Iorque, argumenta que os Estados Unidos, por ser um país federativo e com tamanho de população comparável ao brasileiro, seria uma base de comparação melhor que outros como Austrália, Cingapura e Portugal para se cogitar como seria no Brasil a implementação de uma base curricular única em nível nacional. Concordo em parte. Acho que estudar o desenho da implementação e os contextos de início do processo ajudam muito.

Ele está correto em trazer este argumento e em apontar em seu relato, que deve servir de alerta aos brasileiros, a identificação de setores ou aspectos cruciais para que a implementação dê ou não certo. Entretanto, eu acredito que o cenário doméstico é um pouco diferente e talvez tenhamos melhor sorte no processo de implementação. Não necessariamente nos resultados. Explico:

Takahashi aponta como questões principais para a análise de prognóstico, partindo do que está dificultando a implementação do currículo nacional nos EUA (principalmente em Nova Iorque, onde ele está): a formação de professores, o mercado editorial e as disputas políticas. É óbvio, como comentei inúmeras vezes no blog e no Missão Aluno da CBN que subir a barra dos parâmetros de aprendizado de alunos em um determinado território depende de um currículo que proponha metas mais ambiciosas – sem as metas ambiciosas explicitadas em uma normativa não se sai do lugar. Mas a a existência de um documento que apenas aponte para a direção certa, sem que haja profunda alteração na formação docente e na produção de materiais, para além de novos parâmetros de avaliação, não vai ajudar ninguém a aprender mais sozinho. O sistema precisa ser reprogramado em torno das metas mais ambiciosas. É isso que se espera que se faça no Brasil. É isso que está sendo feito em alguns estados americanos como a Califórnia, mas que não foi feito no Estado de Nova Iorque, que optou por ficar só com a primeira parte da equação.

Vamos então ao que pode sair diferente no Brasil, apenas se e somente se, houver uma conjunção de disposição política com competência técnica. O Governo Federal tem por atribuição constitucional para a educação básica apoiar material e tecnicamente os estados e municípios na elaboração de implementação de políticas educacionais eficientes, eficazes e de qualidade. Deveria fazer isso por meio do MEC, do INEP e do FNDE, mas tem tido uma atuação bem leniente, pelo menos durante os governos do PT, dada sua forte base sindicalista. Vamos lembrar do PNAIC – um montão de recursos mobilizados para alfabetizar alunos apenas aos 8 anos com parâmetros absolutamente desorganizados e ultrapassados. Ou seja, ainda não vimos de maneira clara os órgãos de nível federal realmente usarem sua capacidade de indução para fazer o Brasil dar os saltos qualidade que já poderia ter dado, pois escolheu jogar para a (sua) galera.

O MEC, agora sob nova gestão, pode lançar mão de mecanismos que estão sob a sua responsabilidade para induzir a qualidade. Esses mecanismos centralizados não estão disponíveis nos EUA e é por isso que declarei no terceiro parágrafo acima que não estamos necessariamente fadados a seguir os passos das experiências negativas de alguns estados dos EUA. O PNLD, as diretrizes nacionais de formação em Pedagogia e nas Licenciaturas, o Enade desses cursos, o concurso nacional de certificação docente (engavetado pelo ancien régime), as Provas Nacionais como ANA e Prova Brasil, além do Enem são exemplos de programa nacionais de caráter indutor de qualidade, mas subutilizados até aqui. A questão é que, como nos EUA, no Brasil há muita gente poderosa contra uma subida de barra substancial, poque ela custa caro, tira poder de subgrupos poderosos e dá muito mais trabalho para escolas e famílias.

Dou o exemplo de Portugal: o conjunto de políticas de indução de qualidade estava indo muito bem até o sindicato docente subir ao poder e começar a desmanchar tudo…

Assim, termino meu argumento de que apesar de não temos a sina traçada para copiar os EUA, o que vamos mesmo continuar a fazer é manter a malemolência brasileira, na qual grassam o populismo e a mediocridade de sempre e deixar a maioria das escolas do Brasil chafurdando no consenso e no tapinha nas costas. E que, como já ocorre, alguns exemplos vão ter imenso destaque. Esses exemplos serão os suspeitos de sempre: Sobral e Ceará, para começar. O que embasa essa hipótese está no começo do parágrafo anterior: é necessário haver a combinação de disposição política com competência técnica. Nenhuma das duas sobra por aqui.

A competência técnica garante que as metas curriculares serão detalhadas e transformadas em sequências pedagógicas, material de ensino em qualidade e disponibilidade compatível com elas, sistemas de avaliação condizente e na reformulação da formação dos professores.

Porque disposição política? Porque é preciso disposição política para dar espaço para a competência técnica e para fazer frente aos seguintes interesses:

As grandes editoras, que vão fazer corpo mole para investir na completa reformulação de suas coleções “cash cow” – produtos de baixa qualidade que vendem muito sem muito esforço ou inovação porque ornam com a mediocridade reinante nas escolas brasileiras.

Os sindicatos docentes, que vão fazer de tudo para barrar a especificação de metas mais ambiciosas para os profissionais. O foco da negociação tenderia a mudar, como aconteceu no Canadá.

Porque os acadêmicos que durante décadas se opuseram ao currículo vão resistir ao máximo para atualizar suas referências teóricas e desdizer suas teorias e referências anacrônicas para montar cursos de formação docente realmente atualizados, em linha com os de países desenvolvidos.

Sobral e Ceará deram as costas para essas forças e hoje alfabetizam a quase totalidade de seus alunos bem no início da escolarização. Sobral, para fugir do risco apontado por Fabio Takahashi com o exemplo do Estado de NY, nos EUA, que se embananou com as provas padronizadas, vai adotar como padrão a prova do Pisa. Pode ser que alguns municípios resolvam seguir esse exemplo, mas vão ter que enfrentar seus fantasmas sozinhos. Porque afirmo isso? Porque o MEC fez uma BNCC tímida, morna. Rompeu, sem dúvida nenhuma, com que tinha sido feito antes e foi na direção certa, mas o documento não é tão poderoso quanto o de Sobral, que foi fundo na especificação de metas muito ambiciosas. Mesmo sob nova gestão, faltou ou força política ou competência técnica ao MEC. Será que isso será revelado na implementação?

Na minha experiência posso testemunhar o seguinte: estamos fazendo a implementação do currículo de Sobral em três contextos diferentes. Em dois deles, Sobral no Ceará e Benevides, no Pará, estou observando de perto como essa combinação de vontade política e competência técnica são poderosos para realmente dar um salto de qualidade. Sobral produziu o documento curricular que realmente aproxima metas de aprendizagem das de países desenvolvidos. É um documento bem diferente do que o MEC apresentou. Benevides pegou o documento e produziu EM UM MÊS um conjunto de sequências pedagógicas completamente diferente do que vinha fazendo e já conseguiu fazer seus alunos aprenderem muito, apenas em um bimestre de aulas!!

Quem está financiando a implementação é o Instituto Natura. É a única ONG de grande porte no Brasil que permite que os projetos educacionais sejam desenhados pelos técnicos das secretarias de educação que apoia, sem impor suas próprias soluções. Esse seria o terceiro elemento do sucesso: coragem política de impor metas mais altas, deixar uma equipe tecnicamente motivada e competente fazer seu trabalho, com base em referências de qualidade e um pouquinho de recursos para movimentar o sistema…

2 Respostas

  1. […] de lembrar um post deste blog, de 8/5/2017, de no qual (sobre uma matéria do Jornalista Fábio Takahashi, da mesma […]

  2. […] de lembrar um post deste blog, de 8/5/2017, de no qual (sobre uma matéria do Jornalista Fábio Takahashi, da mesma FSP, que […]

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