A BNCC precisa funcionar como uma biblioteca para o professor
No dia 3 de maio último o Ministério da Educação lançou a segunda versão da Base Nacional Comum Curricular. Inócuo fazer comparações com a primeira versão, porque aquela era tão frágil, que não encontrava pontos suficientes para comparação com documentos de países desenvolvidos e nem contava com a lógica necessária que lhe desse algum uso. A questão agora não é dizer o óbvio – o documento consegue parar de pé – mas avaliar se é um documento que permita planejar a educação no Brasil aproximando-a daquela de países desenvolvidos. Colocaram um bode mal-cheiroso, que agora foi tirado, a discussão pode mudar de nível.
Antes de mais nada, é fundamental compreender que um documento curricular é um instrumento de gestão pedagógica e escolar, uma normativa essencial à implementação de políticas públicas de educação que se pretendam sérias, compromissadas com o aprendizado de todos os alunos e em patamares cada vez mais altos de complexidade. Os documentos curriculares de países desenvolvidos hoje são o primeiro passo na materialização do desejo de se levar excelência e equidade às salas de aula.
No momento em que o País está parado, desejando ser uma Nação mais justa e desenvolvida econômica e socialmente, dar um passo técnico construindo um documento competente é também dar um sinal político de que se pode gerir as políticas sociais com os olhos nos interesses da população e não nos comezinhos tacanhos do corporativismo de plantão e da incompetência que pautaram a primeira versão.
A minha análise inicial do documento divulgado na semana passada teve, como na que fiz para a primeira versão, foco na disciplina de Língua Portuguesa, na qual apontei a virtual ausência de Gramática, para além de uma estrutura incompreensível e da escrita de competências/habilidades que não faziam o menor sentido para as necessidades de planejamento de uma escola capaz.
Para essa nova análise, volto a explicar o básico sobre o que se espera de um documento curricular.
Para ser competente, um documento curricular de qualidade deve ter quatro características básicas: a coerência de sua estrutura, a clareza e o rigor acadêmico de seus objetivos pedagógicos e a progressão clara deles. Para facilitar a compreensão da importância dessas características, faço um paralelo com a estrutura de uma biblioteca. A coerência da estrutura é como a construção que abriga uma biblioteca: ao se chegar a ela encontram-se facilmente os caminhos para se alcançar os livros, que, na minha metáfora são os objetivos pedagógicos. Estes devem estar ordenados em eixos (corredores) por assunto de maneira explícita e óbvia, obedecendo uma sequência lógica de complexidade, que aumenta com a idade dos alunos e as séries escolares. Não há vácuo nas prateleiras e o que está no fim delas é muito mais desafiante para os alunos (e para os professores) que o que está no início. Além disso, cada livro (metaforicamente, a competência daquela disciplina e eixo a ser desenvolvida em uma determinada série) deve ser realmente relevante para a vida escolar de cada aluno, que no seu conjunto, formará a sociedade brasileira do futuro. Livros desconectados no meio dessa biblioteca lógica e enxuta, só embaralham as ideias de quem está querendo planejar a complexa atividade de ensinar, particularmente em contextos de vulnerabilidade que abundam no Brasil.
E o que foi que achei dessa nova planta da biblioteca de planejamento escolar brasileiro? Em primeiro lugar, conta com um hall de entrada bonito e atraente – os objetivos de Língua Portuguesa elencados nas pgs 97 a 99 são claros e relevantes. Entra-se na biblioteca animado. Logo de cara, o corredor da educação infantil dá num beco sem saída que não se comunica com o ensino fundamental – os objetivos relacionados à apropriação inicial de escrita e leitura são muito frouxos, embora seja perceptível o desejo de imprimir a essa etapa um caráter de intencionalidade de aprendizado. A leitura cuidadosa do currículo da França, por exemplo, ajudaria a resolver esta questão na hora de revisar a presente versão. Há uma opção a ser feita em benefício dos mais pobres – a etapa é sim a preparação para a entrada na vida escolar regular e o aluno deve já ter as primeiras experiências de leitura e escrita que permitam uma transição o mais suave possível para o ensino fundamental. Elas devem vir da escola e não serem deixadas por conta de mães educadas e zelozas. Essa parede entre as duas etapas (ensino infantil e fundamental) ainda precisa ser quebrada.
No ensino fundamental abriram-se os corredores lógicos por eixos de aprendizagem: oralidade, leitura, escrita e gramática, mas os encheram de entulhos conceituais que só atrapalham a circulação: os campos de atuação. Não querem dizer muita coisa e atrapalham mais que ajudam a se chegar nos livros, os objetivos pedagógicos em si, que é o que se procura quando se entra na biblioteca metafórica do documento curricular.
Quando ao rigor, ou no meu paralelo, o nível de conteúdo dos livros, boa parte deles ainda pode ser muito melhorado em termos da redação e progressão dos objetivos pedagógicos, mas já há material para mudar radicalmente a maneira de se planejar o ensino fundamental no Brasil.
O gás de elaboração curricular acabou no ensino fundamental. Claramente não se superou o caráter feudal das etapas educativas no Brasil que constroem verdadeiras fortalezas inexpugnáveis entre as etapas de ensino. A educação infantil ficou presa em um beco e o ensino médio virou um jardim psicodélico no qual toda e coesão e progressão foi perdida: a biblioteca curricular brasileira acabou antes da hora. Claramente as equipes das pontas – infantil e médio – não interagiram durante a obra com a equipe do ensino fundamental!
Mas gostaria de dar destaque à menção explícita à Gramática em geral e ao uso do dicionário a partir do segundo ano do ensino fundamental. Isso pode representar uma grande virada na capacidade de construção de vocabulário e no domínio das regras de ortografia para os alunos brasileiros, além do hábito em si, de consultar um livro cheio de palavras e seus significados, que permite aos alunos (e aos seus professores) expandir seu horizonte lexical enquanto se aprende a escrever e a interpretar textos.