Dos filhos deste solo és mãe gentil, Pátria Educadora?

No imaginário dos brasileiros o adjetivo gentil não costuma combinar com o educador(a). Se uma pessoa é gentil, acolhedora e atenciosa, não pode ser educadora. Para se ser educador é preciso ser autoritário, ríspido, distante e chato. Deve ser por isso que quando se fala em educação formal sempre tem alguém para propor relativização do que seja formal, em geral para desqualificar as disciplinas escolares e propor inovações divertidas, lúdicas e que evoquem o prazer imediato. O que depende do esforço, da dedicação, do mérito, é chato, antiquado e educador. O gentil é o que é solto, espontâneo. Na minha opinião essa percepção, além de equivocada, causa enorme tensão entre as famílias e as escolas.

A Constituição brasileira diz que a educação é responsabilidade conjunta do Estado e da família. Mas as famílias são muito diferentes entre si na sua capacidade de educar seus filhos para a uma vida adulta privada responsável e para a vida pública cidadã e do trabalho. Além disso, há uma parte da educação que é praticamente exclusiva, ou, no mínimo, preponderantemente, escolar. Ou seja, é institucionalizada e, portanto, dependente de formalização.

É na escola que aprendemos a falar, a ler e a escrever de acordo com as normas formais da língua e que serão exigidas para o mundo do trabalho. Em particular para os postos melhor remunerados. O domínio da língua oficial de um país  também é essencial para o pleno exercício da vida cidadã e até para a plena fruição de bens culturais e de entretenimento mais amplos. Sem nem mencionar Matemática e outras disciplinas da área de Ciências.

Assim, há uma parte da educação que é responsabilidade das famílias e outra que é das escolas. Isso nunca ficou muito claro no contexto brasileiro. Ora as escolas reclamam que a educação foi inteiramente “terceirizada” para elas, sem que as famílias se preocupem em dar o mínimo de noções de civilidade para seus filhos, ora são as famílias que se opõem a conteúdos de educação sexual, política ou histórica que afrontam seus próprios valores.

A existência de um currículo complementado por um conjunto de documentos normativos ajuda a especificar o que as escolas (institucionalizadas e reguladas pelo governo) podem oferecer aos seus alunos. Muitas vezes até com informações para ajudar as famílias a incutir em seus filhos processos comportamentais e cognitivos que ajudam na colaboração mútua entre famílias e escolas, em prol da formação das novas gerações.

Cada país acha seu caminho, mas o mundo é cada vez mais integrado. Na hora de elaborar suas legislações internas, as nações levam em consideração acordos multilaterais, tendências de desenvolvimento global e aprendem uns com os outros.

O governo federal brasileiro toma as decisões que julga melhor. Mas seria interessante manter-se em linha com o que fazem países industrializados e democráticos, porque, imagina-se, até pela própria Constituição brasileira, que é o que desejamos ser um dia.

Este blog parte desta premissa, a de que os brasileiros, na sua maioria, querem viver sob um regime democrático no sentido político, econômico e social e melhorar seu padrão de vida, o que cada vez mais é dependente de conseguir formar adultos com capacidade cognitiva e produtiva de alto padrão. Ou não?

Outra premissa que considero óbvia é a de que não é necessário reinventar a roda e que podemos “sapear” o que países mais desenvolvidos que nós já fizeram para termos, no mínimo, fontes de inspiração qualificada. Trago hoje o exemplo da França.

O tema continua a ser o currículo nacional brasileiro, cujo embrião foi lançado no mês passado pelo Ministério da Educação. Minha opinião é de que o documento é tão tosco que chega a ser desrespeitoso com os brasileiros. Não é ideologia simplesmente, é corporativismo puro. Na Língua Portuguesa jogaram uma cortina de fumaça para disfarçar uma lista de competências risíveis, de tão mal definidas, ou por serem simplesmente impróprias para se aprender na escola, como conhecer emoticons e o internetês.

Já presenciei profissionais da educação dizerem que currículo formal é uma política neoliberal, ou gerencialista, ou de direita e coisas do gênero. Dá vergonha ouvir argumentações tão rasas vindas de educadores.

Assim, trago hoje o exemplo de um País “teteia” dos acadêmicos da educação que se dizem de esquerda ou progressistas, a França. A França tem, desde o início de 2012, um governo Socialista, que se seguiu a um “neoliberal”. O neoliberal publicou um currículo detalhado e o socialista, que resolveu refundar a escola republicana francesa, não só o manteve, como restringiu as prioridades escolares ao domínio da língua oficial e à Matemática e a atenção máxima aos anos iniciais da educação escolar.

Tudo bem que nós, brasileiros, estamos quase sem governo. Mas, pelo menos, o setor de educação deveria estudar com atenção o que se faz nos países desenvolvidos. Aqueles vêm, genuinamente, buscando dar oportunidades educacionais mais equitativas às suas populações, justamente por meio da especificação do que se deve aprender e da priorização do domínio da língua oficial e da Matemática. Todos usam formas MUITO PARECIDAS de fazer isso. O Brasil fugiu do formato e do conteúdo. Para mim, só há uma conclusão: é um subterfúgio para continuar se esquivando da obrigação de fornecer educação escolar de qualidade à toda população. Ao deixar o que é mais complexo e inerente ao ambiente escolar de fora do currículo, o governo federal devolve às famílias a responsabilidade de descobrir o que é essencial. Só vai conseguir fazer isso, um tipo muito específico de família. Adivinhem qual….

Abaixo seguem as especificações do currículo francês para o último ano da educação elementar ou primária, à qual estão obrigados os alunos de 10 anos. Ou seja, equivalente à seriação brasileira.

Para esta etapa, a língua oficial francesa é apresentada por meio de mapas de progressão detalhados nos seguintes eixos ou temas: linguagem oral, leitura, escrita, redação, literatura, vocabulário, gramática e ortografia.

Será que a nossa Pátria Educadora vai ser mãe de todos os seus filhos? Ou porque quer ser mãe, não vai ser educadora?

(coloquei os textos no idioma original na frente de cada item para quem resolver estudar, poder retraduzir da forma que achar melhor, assim como os links para acessar todo o conteúdo da França)

Note-se que escrita é diferente da redação.

Para o último ano da educação elementar ou primária em escrita, temos:

Na escrita:

  • Copier sans erreur un texte d’au moins quinze lignes en lui donnant une présentation adaptée.
  • Copiar sem erro um texto, de, pelo menos quinze linhas, dando-lhe uma apresentação adaptada.

Redação é um eixo à parte, que merece mais detalhamento:

  • Dans les diverses activités scolaires, prendre des notes utiles au travail scolaire.
  • Nas diversas atividades escolares, tomar notas úteis para o trabalho da escola.
  • Maîtriser la cohérence des temps dans un récit d’une dizaine de lignes.
  • Dominar a consistência do tempo em uma história de dez linhas.
  • Rédiger différents types de textes d’au moins deux paragraphes en veillant à leur cohérence, en évitant les répétitions, et en respectant les contraintes syntaxiques et orthographiques ainsi que la ponctuation.
  • Escrever diferentes tipos de textos de pelo menos dois parágrafos assegurando sua coerência, evitando repetições e respeitando as restrições de sintaxe e ortografia, assim como a pontuação.
  • Écrire un texte de type poétique en obéissant à une ou plusieurs consignes précises.
  • Escrever um texto poético obedecendo a um ou mais instruções específicas.

E é separada da aquisição de vocabulário:

Acquisition du vocabulaire :

  • Commencer à utiliser des termes renvoyant à des notions abstraites (émotions, sentiments, devoirs, droits).
  • Começar a utilizar os termos relativos a conceitos abstratos (emoções, sentimentos, deveres, direitos).
  • Comprendre des sigles.
  • Entendimento de siglas.
  • Maîtrise du sens des mots
  • Dominar os significados das palavras
  • Distinguer les différents sens d’un verbe selon sa construction (ex. jouer, jouer quelque chose, jouer à, jouer de, jouer sur).
  • Distinguir os diferentes significados de um verbo de acordo com a sua construção (por exemplo. Jogar um jogo, jogar no sentido de arremessar)
  • Identifier l’utilisation d’un mot ou d’une expression au sens figuré.
  • Identificar o uso de uma palavra ou expressão em sentido figurado.
  • Classer des mots de sens voisin en repérant les variations d’intensité (ex. bon, délicieux, succulent).
  • Organizar de palavras significado semelhante, identificando as variações na intensidade (ie. Bom, deliciosa, suculenta).
  • Définir un mot connu en utilisant un terme générique adéquat et en y ajoutant les précisions spécifiques à l’objet défini.
  • Definir uma palavra conhecida usando um termo genérico apropriado e adicionando informações específicas para o objeto definido.

Por sua vez detalhada em relação às famílias das palavras:

  • Regrouper des mots selon leur radical.
  • Reagrupar palavras de acordo com seus radicais
  • Regrouper des mots selon le sens de leur préfixe et connaître ce sens, en particulier celui des principaux préfixes exprimant des idées de lieu ou de mouvement.
  • Reagrupar as palavras de acordo com seu prefixo e compreender seu sentido, especialmente a dos grandes prefixos que expressam localização ou movimento.
  • Regrouper des mots selon le sens de leur suffixe et connaître ce sens.
  • Reagrupar as palavras de acordo com seus sufixos e compreender seu significado.
  • Pour un mot donné, fournir un ou plusieurs mots de la même famille en vérifiant qu’il(s) existe(nt).
  • Para uma determinada palavra, apresentar uma ou mais palavras da mesma família, certificando-se de que existe(m).

http://www.education.gouv.fr/cid92069/annee-scolaire-2015-2016.html

http://www.education.gouv.fr/pid25535/bulletin_officiel.html&cid_bo=87834

http://eduscol.education.fr/cid58402/progressions-pour-l-ecole-elementaire.html

Clique para acessar o Progression-pedagogique_Cycle2_Francais_203786.pdf

Clique para acessar o Progression-pedagogique_Cycle3_Francais_203759.pdf

7 Respostas

  1. Maria do Rozário Starling | Responder

    Leitura obrigatória para todos os professores, pais.Já me aposentei depois de trabalhar 45 anos na escola pública.Passei, nesse período, por diversas mudanças nos objetivos do ensino da língua.Concordo que é preciso dosar o trabalho com as linguagens com a sistematização da língua.O estudo formal da língua sempre a serviço da aprendizagem da leitura e escrita. Nunca divorciado desses objetivos.Esse é o desafio.Nada fácil.

  2. Prezada autoras,
    É com algum alento que leio esse texto e chego a ter alguma esperança de que pode haver educadores, ou pedagogos, que tenham foco no conteúdo como forma de transformação da sociedade (elevação do padrão de vida geral) em vez de vender ilusões de discurso “romântico” que na prática nos levará, quando muito, à igualdade da ignorância e improdutividade pseudo intelectualizada.
    Saudações,
    Paulo Pereira
    PS: Sugiro que revisem o texto pois está com alguns probleminhas, talvez de digitação, e tal texto merece excelência em seu português.

    1. Obrigada! Vou passar o revisor de novo…

  3. Arleni Elise Sella Langer | Responder

    Concordo inteiramente com o opinião apresentada ao postagem. Peço apenas atenção a grafia correta da palavra rasas. Sei que isso acontece com qualquer digitador, Meu intuito é só ajudar.
    Dá vergonha ouvir argumentações tão “razas” vindas de educadores.

    1. Arleni, obrigada pelo olhar atento. Vou corrigir.

  4. Cara mestra. O Brasileiro é NemNemNem! Nem gentil, nem cordial e nem educado. Educação é complexa. Você, educadora, consegue abrir a “caixa preta” da educação.Educador no Brasil, é vítima do Suplício de Sísifo. PP/. Date: Mon, 12 Oct 2015 16:07:23 +0000 To: paulo.pereirasantos@hotmail.com

  5. Tanto a entrevista na CBN como este post estão excelentes: clareza e objetividade. Reitero que o mesmo empenho do MPF na Operação Lava-Jato deve ser aplicado na fiscalização da Lei: o MPF deve fiscalizar se o que está previsto na Constituição Federal sobre EDUCAÇÃO está sendo realizado com exação, pois falta de exação na Administração Pública é um ato ilícito. Banalizar a Educação e o mesmo que a “banalização do mal”.

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